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Sumário

Sumário

Três paisagens, por Cauê Alves, 2019

Sobre Game Over ou A extinção do Brazil, por Tiago Santinho, 2018

Campos Gerais, por Josué Mattos, 2018

E agora São José?, por José Bento Ferreira, 2018

Nosso lugar é caminho, por Bernardo Mosqueira, 2017

Prefácio Guia de Campo, por Bruno Mendonça, 2016

Posfácio Guia de Campo, por Jailton Moreira, 2016

Sobre Tóxico Trópico, por Vanessa Badiacla, 2015

Sobre Tudo que vejo é meu!, por Andrés Hernandez, 2015

Sobre Terra non descoperta, por Douglas de Freitas, 2015

"Sob desígnio e suspeita, o desenho entra na paisagem e sedentária-se nas fachadas do 888,rua D.JoãoIV..." , por Maria de Fátima Lambert, 2015

As raízes são importantes, por Mariaelena Cappuccio, 2015

Demiurgo Caballero, por Renato Pera, 2014

Ecomarginais, por Juliana Monachesi, 2014

Ele disse: Não gosto de paisagem ( off we go ), por Maria de Fátima Lambert, 2014

Projetando para o colapso, projetando para a ausência, por Mario Gioia, 2013

O pitoresco mora ao lado, por Raphael Fonseca, 2012

Forquilha para terrenos baldios, por Marcio Harum, 2012

Do cerrado dos Campos de Piratininga, por Marcio Harum, 2012

Sobre Change, in Latin America and the Caribbean, por Váleria González, 2011

Ateliê Fidalga no Paço das Artes, por Mário Gioia, 2010

Sobre Não pise na grama ou Árcadia, por José Bento Ferreira, 2010

O espaço é o território onde o ser se concretiza, por Douglas de Souza Leão, 2009

Pós- Conceitual, por Saulo di Tarso, 2008

Três paisagens

Três Paisagens, por Cauê Alves

Mais do que um espaço ou território determinado a paisagem é também uma construção. Além de elementos naturais e geográficos, algo da história e da cultura está presente na paisagem. Ela está intimamente ligada ao horizonte de possibilidades e, por isso, possui uma dimensão temporal. Ou seja, a paisagem está ligada às projeções, ao que ainda irá acontecer, ao porvir, e também ao devir. Seja natural ou artificial, a paisagem está diante ou ao redor de nós e portanto é indissociável do ambiente em que vivemos. Ela foi objeto de investigação das ciências e das artes, desde os naturalistas que passaram pela América do Sul nos séculos anteriores, como como Karl Friedrich Philipp von Martius e Alexander von Humboldt, até artistas contemporâneos como os que integram a mostra Três Paisagens.

Entre os modernistas, fundamental é a pesquisa de Roberto Burle Marx, que ao longo de sua trajetória, além da mata atlântica, trabalhou com plantas do cerrado, espécies amazônicas e do sertão nordestino. Ele valorizou as espécies nacionais até então desprezadas e, entre o trabalho de artista e o de cientista amador, realizou dezenas de expedições em que descobriu espécies ainda não catalogadas. Mais do que fazer jardins, a paisagem para Burle Marx é construção de espaço público, áreas de encontro e convívio com o diferente.

Em 1965, Hélio Oiticica chamou de manifestação ambiental uma série de capas, estandartes e tendas, com a ênfase no corpo e em experiências sensoriais.  Dois anos depois realizou Tropicália, uma espécie de jardim, ou melhor, um ambiente com areia, pedras, plantas, papagaio, construções em madeira (Penetráveis) e poemas. Nesse ambiente tropical e colorido, havia uma alusão a paisagem carioca, aos morros e favelas. Além disso, o artista tinha vontade de elaborar uma imagem, mesmo que nada edificante, da realidade brasileira. Ela estava vinculada com a dança, o samba e a participação do espectador. Algo da impossibilidade de um Brasil moderno e civilizado estava colocado em Tropicália de Oiticica.

Mais de 50 anos depois, Daniel Caballero participa na Casa do Parque de Três Paisagens, com Dark Tropicália, 2019. A série de quatro pinturas sobre lonas de caminhão traz imagens de paisagens tropicais da mata atlântica tendo o preto como cor predominante. Em vez de ressaltar o verde vigoroso das matas, usar cores saturadas ou algo de uma paleta de cores tropicais, Caballero nos chama atenção para as trevas e para a escuridão. De fato, a sensação geral é a de vivermos numa época obscurantista, de ocaso. No momento em que dados científicos são simplesmente negados em nome de crenças, parece que as luzes estão mesmo se apagando e que estamos no meio da tempestade.

A montagem das paisagens em grandes formatos bem próximas uma das outras cria uma espécie de ambiente. De perto vemos apenas borrões, linhas e manchas carregadas que se distanciam de um desenho frio ou duro. É apenas com o recuo que o nosso olhar se afasta do gesto do artista e apreende uma totalidade que se revela sempre por partes. A partir dos enquadramentos escolhidos é como se nunca pudéssemos ter a experiência com o todo da floresta, vemos sempre fragmentos, pedaços de árvores ou cipós.

Mais do que pintor, Caballero é também uma espécie de viajante naturalista contemporâneo que faz expedições pelos terrenos de Piratininga. Desde 2015, ele tem desenvolvido o projeto Cerrado Infinito a partir da pesquisa em terrenos baldios e remanescentes do cerrado no planalto paulista, que possui características bem diferentes da mata atlântica comum na Serra do Mar. No vídeo Transplante de Paisagem, o artista reativa uma praça na cidade de São Paulo a partir do momento que transplanta e cultiva espécies típicas do cerrado paulista no espaço público. O processo, por definição sem fim, conta com  colaboração de diversos agentes e parceiros que se juntaram em torno da causa. Além de um ativismo político, o trabalho trata da resistência das espécies que tradicionalmente são desvalorizadas e compreendidas como mato a ser exterminado. A obra de Caballero se coloca contra a homogeneização da paisagem e reabre uma discussão sobre a relação entre o ambiente e a construção de vistas urbanas.

Outro artista integrante de Três Paisagens é Fernando Limberger, que possui também uma atuação como paisagista profissional. Sua obra em geral reinventa paisagens a partir da desnaturalização do olhar. Ao se valer de pigmentos naturais e tons de areias que não vemos normalmente no solo, sua prática explicita que o que chamamos de paisagem tem um vínculo íntimo com o projeto e com a pintura. Claro que há uma complexidade de outras questões na construção de paisagens, que evolve espécies da botânica, o espaço tridimensional, o deslocamento de materiais e as variáveis do ambiente.

A paisagem que Limberger realiza na área externa da Casa do Parque  reflete o Parque Villa Lobos do outro lado da avenida. Tanto no sentido de espelhamento e inversão da imagem como de nos fazer refletir sobre as características desse espaço. O vínculo entre a casa e o parque se dá a partir da coleta e plantio que o artista fez de sementes de diversas espécies encontradas ali na frente. Trata-se de uma síntese das espécies de plantas que integram o projeto de paisagismo do grande jardim urbano, mas também das espécies invasoras, aquelas que nascem silenciosamente sem que ninguém as tenha cultivado. As plantas foram semeadas por Limberger numa área retangular de cerca de 25 metros quadrados. Ao longo do tempo da exposição as sementes vão brotando e se desenvolvendo. A paisagem para Limberger é um processo em constante transformação. A configuração com formas orgânicas que o trabalho adquire é comparável com as formas sinuosas dos jardins de Burle Marx. 

Mas a areia preparada é preta e bastante distante da exuberância cromática dos projetos de Burle Marx. Se por um lado a terra preta indica um campo fértil por conter resíduos orgânicos de decomposição, por outro é aquela que contém elementos mortos. A escuridão inicial predominante na sementeira se opõe ao estereótipo da paisagem tropical. A instalação traz elementos da cor do carvão, como se fosse o que restou de uma floresta depois da queimada. Os desenhos com penas de galinhas tingidas de negro em caixas transparentes, sÃo semelhantes, mas trazem um raciocínio pelo negativo. A cor aparece no fundo, a partir dos intervalos e vazios entre as penas. Os diferentes tons esverdeados dos papeis contrastam com as áreas escuras um tanto nubladas pelos fios das penas. Se os desenhos são autônomos e não partem de projetos paisagísticos, ele se aproximam bastante de plantas baixas usadas em projetos.

A obra de Ana Paula Oliveira em Três Paisagens se relaciona com a paisagem menos como representação do que a partir da presença de fragmentos de elementos naturais como cascas de cigarras ou casulos. Em trabalhos anteriores a artista já recorreu a animais vivos como peixes e borboletas. Mas agora, a presença de animais metalizados, como se seus corpos estivessem preservados da ação do tempo, traz evidências da interrupção da vida. 

Está tudo suspenso, é como se nem mesmo o processo de decomposição pudesse ocorrer. Algo próximo de um estado de exceção. De uma forma piramidal, com o vértice apontado para uma das quinas do espaço expositivo, brotam cerca de 5 mil origamis de cigarras que se multiplicam e se espalham estranhamente pelo entorno. A estrutura da pirâmide, feita de dormentes, traz indícios da passagem do tempo. As peças de madeira-de-lei, retiradas de antigas linhas ferroviárias, são pedaços da paisagem. Pesadas, elas desafiam a gravidade, mas paradoxalmente para apoiar leves dobraduras de cigarras. Tradicionalmente a cigarra está ligada ao canto, a música e ao verão. Entretanto, as de Ana Paula Oliveira estão silenciadas, mudas e frias como o metal.

A artista inventa pequenas paisagens, como se alguns animaizinhos tivessem nascido naturalmente em intervalos, sulcos na madeira ou no metal. É como se as formas já existentes dessem origem a esses casulos ou borboletas metalizadas que se acomodam ou pendem de materiais contrastantes. Algumas de suas caixas cobertas por vidros se aproximam de mostruários de museus de história natural que abrigam espécies raras. São composições em tons de cobre com formas geométricas misteriosas, materiais distintos, ao lado de exemplares reais ou inventados da fauna. Os desenhos recentes de Ana Paula Oliveira misturam linhas e casulos que se assemelham a fósseis. Suas colagens feitas a partir de livros de geologia, assim como em outros trabalhos dela, são frutos de lentos processos de sedimentação. 

As paisagens, tanto as que habitam os artistas da presente mostra quanto as produzias por eles, surgem do contato e da modificação do ambiente ao redor. Todos os três, seja intervindo diretamente no ambiente ou partindo de elementos naturais recolhidos, inventam paisagens e contribuem para a ampliação de nossa  percepção e consciência do mundo. Reunir trabalhos que extrapolam distintas convenções de paisagens é ultrapassar a noção instituída de que ela é aquilo que está diante de nossa vista. Cada uma das três paisagens abarca um campo aberto e indeterminado de sentidos que se aproximam ora pelo que há em comum – pela constatação de uma interrupção da vida, da recusa dos aspectos mais exuberantes num período de trevas –, ora pelas diferenças devido às singularidades de cada obra. Essa diversidade de paisagens, sem dúvida, é fundamental não apenas para o equilíbrio, mas para a superação das adversidades e o desenvolvimento do ambiente em que vivemos

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Sobre GAME OVER ou A extinção do Brazil, por Tiago Santinho

“O horror, o horror...” As palavras do comandante Kurtz sempre retornam em situações políticas tão desastrosas como a que passamos hoje. Porém esse horror em Conrad e Coppola remete mais às forças obscuras da natureza, é aquele que perpassa aquilo que comumente associamos aos nossos medos ordinários. Esse “o horror...” que de tão repetido e parodiado, fez com que até mesmo duvidassem se foi alguma vez proferido por Marlon Brando ou até mesmo se foi escrito por Joseph Conrad.

Svetlana Aleksiévitch em seu “Vozes de Tchernóbil”. Faz uma costura de dezenas de relatos sobre o acidente nuclear na Ucrânia. A catástrofe em Tchérnobil traz ainda algo mais assustador que a própria escala maligna do acidente: a irresponsabilidade humana. Svetlana que escreve algo entre o jornalístico e o ficcional e vai nos tecendo a ambigüidade do perigo tecnológico entre seu controle e seu descontrole possível. No caso alí, tínhamos o horror invisível somado a uma sociedade burocrática que também se movia sorrateira. Um desastre como esse ou como o ocorrido em Fukushima perdem um certo caráter assustador e torna os dramas mais íntimos e de alguma forma limpos, pois o perigo não é visível, e além disso, é uma ameaça silenciosa. Fica à espreita incrustado nas superfícies por tempo não determinado.

Daniel Caballero trata de algumas dessas catástrofes. Mas ele escolhe a violência na representação dessas ocorrências. Seu conjunto de trabalhos é quase um monumento coeso mesmo que a princípio caótico. Não tecnicizando com explicações científicas, estatísticas ou maquiando com os filtros historiográficos. Não agindo como boa parte de artistas contemporâneos e suas estratégias de exposição descritiva, de pesquisa exibidas em displays, arquivos e documentários. Caballero parte para uma exibição pesada e “sem frescuras”: ele mesmo sugere que apesar da técnica não vê os trabalhos expostos exatamente como pinturas, mas como algo mais urgente, mais direto, mais pungente. Mesmo flertando com o que há de derrisório, mas de modo igual há muito de risível ou ridículo na sinceridade.

Qual afinal é a potência de uma tomada de posição “poética” de um artista diante uma catástrofe natural e política? Mesmo que essa posição harmonize-se a um senso comum. Afinal a comoção nos casos das grandes tragédias é unânime e, dentro de possíveis intervenções ou mesmo exercícios de explicitação ou rememoração de uma ocorrência trágica salvando-a do esquecimento, pode ser até mesmo embaraçoso evidenciar a evidência da tragédia tomando-a de forma ainda mais trágica. Extremar o sabido, jogar na cara... 

Porém os jogos de reapresentação que artistas costumam articular quando partem em direção ao “real sociológico” fazem com que dentro de seus limites expressivos se tornem muitas vezes redundantes. Além disso, o distanciamento de uma legitimação discursiva: o artista que trata de ciência, o artista que trata de política, que trata da antropologia, etc. Muitas vezes caindo no literal por insegurança ou desejo de inteligibilidade. 

Há formulas que se tornaram comuns para exposição de trabalhos artísticos que se pretendem como alertas, conscientizadores ou denunciadores de problemas e desastres sociais. Dizer que há formulas não implica numa crítica negativa ou desdenhosa desde temos o abandono salutar da mítica originalidade “arte pela arte” a fórceps e também ao que diz respeito à delimitação do tema e o desempenho em sua transmissão e compreensão. 

O empenho então deixa de ser na forma de exibição da posição (ou simples apresentação) do artista quanto ao problema exposto e torna-se sim a especificidade da pesquisa ou denúncia em si proporcional ao quanto esse objeto é obscuro, interdito ou excêntrico. 

Caballero vai mais longe e faz da representação das tragédias algo com uma força e pungência que coadunem com o objeto. De mais a mais também satura, macula, polui. Usa da forma bruta pra representação não dissimulada ou pretensamente intelectual quando toma a si a responsabilidade de ser tão duro quanto os assuntos que trata.  

Mas pensando, por exemplo, na tragédia de Mariana, ou no desaparecimento de Sete Quedas... como abordá-los sem cairmos num circunlóquio tecnicista que contraditoriamente justificaria o injustificável e que apenas os afirmaria como passado, como se esse passado fosse enterrado dentro da história e que não pudesse emergir sempre pior, sempre pedindo sua atualização mesmo que para isso fosse necessário que voltasse rudemente distorcido. 

 A tragédia de Mariana, por exemplo, ecológica e coincidentemente política jogou com diversos sentidos de comoção pública: do pesar pela catástrofe natural e suas implacáveis consequências às discussões quanto a responsabilidade e viria com a decorrente punição da empresa privada envolvida e a displicência do governo daquele Estado quanto a monitoria e devidas inspeções de segurança das estruturas dessas barragens.

Nem é necessário lembrar que não houve nenhuma punição substancial aos responsáveis até o momento em que escrevo. Pois como de hábito, foi paulatinamente arrefecido aquilo que era revolta coletiva, e “acreditem se quiserem” o desaparecimento da lamúria midiática de então (esta mesmo que dissimulada, afirmando mais uma treta dos deuses em detrimento a relevância das infrações políticas implicadas). Bom... nada de novo sobre a enxurrada do mal...

Quando se fala em história há mesmo um jogo bizarro, como esta tragédia que mesmo recente vai desaparecendo, pois fazemos mesmo uma espécie de defesa e apaziguamento de consciência, que se consuma, que se gaste no inexorável do sem solução, assim sem problema. 

Talvez fosse mesmo necessário fazê-las emergir de seus “passados”, desarquivá-las, colocá-las assim como representações delinqüentes, em um máximo de atualização, mesmo que perverta seu caráter de registro ou documento. Veja que o desaparecimento de Setes Quedas ou o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro têm mesmo que em seu distanciamento no tempo um mesmo destino de crimes exemplares cometidos por uma burocracia displicente. Um crime de outra temporalidade, um crime que parece sem crime. 

Fazer com que se desburocratizassem... que se mesclassem seus potenciais de desastres reais com os imaginários. 

A filósofa Anne Le Brun no ensaio “O Sentimento da Catástrofe” escreve sobre a mudança de apreensão das tragédias “naturais” pela cultura. Do sublime romântico e a natureza como fonte de medo e fascínio até a atual paranóia tecnizante e protocolares racionalizadores. Sugerindo assim uma debilitação do imaginário e consequentemente uma espécie de enfraquecimento “poético”.

Naturalizar, ou ainda, neutralizar nossa responsabilidade diante esses acontecimentos... manipulando sua tecitura: vezes os tornado algo do inexpugnável da contingência, da “incontrolável natureza”, vezes  criando meandros sedutores onde tão tecnicamente complexos e inextricáveis que jamais chegaríamos a um culpado, uma causa ou razão. Lembrando que até o Dilúvio teve uma causa política (um castigo contra o estado pecaminoso da humanidade).

A exposição “Game Over ou A extinção do Brazil” é uma experiência raivosa e arriscada onde esse risco está longe de ser unicamente intelectual, onde mesmo que se referindo a um escopo relativamente temático, os sentidos estão menos atrelados às idéias do que a presença, o peso, a brutalidade dos trabalhos exibidos.

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Game Over
Campos Gerais

Campos gerais, por Josué Mattos, Junho, 2018

A invisibilidade que paira sobre o cerrado corresponde ao contexto em que campos gerais passou a ser  adotado como termo genérico, disse-me Daniel Caballero. Seu uso teria relação direta com a desenfreada extinção do bioma. De modo a considerar não menos invisível a linha tênue que divide as generalidades que originaram seu nome, daquelas que o definem forçadamente como áreas de risco, matagal, terreno baldio ou lugar de abandono de dejetos e detritos. Mato é outro termo reservado à vegetação nativa e também reforça sua degradação. Refletido em processos de desumanização, seu desaparecimento ocorre enquanto a implantação de espécies hegemônicas tem garantidas sua proliferação e sobrevivência. À espécie inferior resta testemunhar sua própria extinção, naturalizada por ideais estetizantes de progresso. Com isso, promover ações capazes de descortinar estratégias nefastas, que transformam a paisagem nativa em espaços hostis — na sociedade que mais utiliza fitossanitários no mundo e pretende dominar essas áreas — tornou-se agenda prioritária em práticas e debates interdisciplinares que resistem aos fertilizantes interessados em que apenas poucas espécies vinguem. 

A exposição Campos gerais reúne três artistas que residem em áreas de risco. Daniel Caballero vive em São Paulo, próximo ao Cerrado Infinito, que ele criou em seu ateliê-viveiro e o estendeu a uma praça pública, na qual abriu trilhas para matagais serem transplantados. Nesse projeto de fôlego, que inclui desenhos botânicos de espécies que muito certamente proliferavam à época da Vila de São Paulo de Piratininga, encontros, registros e engajamentos com implicações diretas na escrita da história da cidade se acumulam, entendidos, nas palavras do artista, como ações de jardinismo suburbano. Como se o que nos desse a pensar fosse a ideia de que o lugar relegado à vegetação nativa espelha o modo como o processo de gentrificação define as margens da paisagem, expulsando o indesejável para suas bordas. Por isso, ao oxigenar projetos como as esculturas sociais de Joseph Beuys e partilhar de sua recente ressignificação, com as esculturas ambientais propostas por Jorge Menna Barreto, em seu projeto Restauro, Caballero movimenta e reposiciona o lugar da marginalizada paisagem do cerrado paulista. Neste quadro, seus jardins, suas trilhas e bombas de sementes atuam contra a extinção absoluta do que restou do bioma na cidade. Reforçado pelo adjetivo infinito, as ações do artista convidam o público em geral a replicar o cerrado em áreas domésticas. Retifica a indiferença gerada pela sociedade dominante e desenha alternativas para a proliferação do bioma, atuando na contramão de textos extrativistas, que o deformam, fazendo rios desaparecerem, enquanto elevam o habitual ritmo frenético da vida, para que a borda do penhasco não seja percebida, mesmo sabendo que logo mais não teremos direito à meia-volta. 

"A mulher dentro de cada um não quer mais silêncio", diz Elza Soares em Deus É Mulher. Ela "vai sair de dentro de quem for" ou deixaremos de ser cada qual. Mata (2017), de Manuella Karmann, tem ampla acepção nesse contexto. É a mulher floresta e o feminino de mato, visto acima como sinônimo da paisagem destinada à extinção. Como a terceira pessoa do singular do verbo matar, conjugado no presente do indicativo, seria a figuração de quem aponta o gatilho de sua própria extinção. É mãe, em sânscrito, idioma de onde origina o intenso processo de formação da artista, que residiu no vilarejo de Nathdwara, Índia, onde estuda, desde 2012, a tradição da pintura Pichwaii, prática que remonta ao século XV. Trata-se da mulher "de dentro de cada um" embebida de lirismo e forte experiência de campo. Sobre seu corpo despido, as folhagens que dividem o espaço circular, com insetos, aves e répteis, marcam expedições pelo vasto quintal do ateliê-floresta da artista, situado na Serra da Mantiqueira. Em um antigo descampado, protegido por sua família desde 1980, dezenas de milhares de plantas foram enraizadas, de modo que a densa vegetação que cobre parcialmente a mulher, ao mesmo tempo vestimenta e voz, com folhagens que brotam de sua boca, fornece outra narrativa central para Campos gerais. Indica quanto a profusão de cores e formas que a caracterizam não está inscrita em contexto menos trágico daquele que Caballero encontra no quase extinto cerrado paulista. Embora o fascínio pelo cenário idílico das "matas do topo" prevaleça por seu horizonte expandido, não escapa ao domínio das gigantescas pastagens e ocupações desordenadas, que transformam a serra em pequenas ilhas, fazendo surgir verdadeiros arquipélagos florestais, constituídos por áreas remanescentes que evitam a queda de encostas. As fortes raízes de KalpaVriksha (2018) sustentam um conjunto de espécies de vida sobre uma árvore que altera a escala do curruíra em relação às mariposas, às quaresmeiras e ao japu-preto. Aproxima o lagarto-teju de besouros e abelhas, reúne folhagens sazonais que camuflam o gafanhoto e o louva-deus. O saí-azul, o teque-teque e o sanhaço, as gralhas e o pica-pau-de-cabeça-amarela, a cobra-cipó e a falsa-coral, todos se ajeitam na árvore, expandindo a poesia de Mata. Quatro meninas se espalham pela árvore que deixa entrever a mão de KalpaVriksha. São as mulheres "de dentro de quem for", diria Elza. O termo sânscrito que intitula a obra é traduzido por árvore dos desejos e tem origem em narrativas da literatura Purana. Parece investigar o desejo das árvores dos desejos. Como um corpo pulsante e diverso, amplia suas raízes e galhos, de maneira a conseguir brotar em outros campos, feito um rizoma criado para encontros e escalas imprevistos.  

Pitomba, jatobá e tarumã estão entre as primeiras espécies conhecidas por Miguel Penha, artista indígena residente na Chapada dos Guimarães. Outro artista explorador, desenvolve seu trabalho em estreito contato com o cerrado do Centro Oeste e a floresta amazônica, cuja profundidade das telas acentua a vastidão da área figurada. Majestosas guanandis, castanheiras, copaíba, buriti e samaúma dividem espaço com piquizeiro sucupira, cumbaru, pau-terra, cana-do-brejo, marmelada-de- espinho. Fragmentos de cipós e escultóricas árvores retorcidas, típicas da região, criam linhas de força à composição de grande naturalismo, que o artista elabora depois de conviver com cada uma, por décadas, em seu ateliê-observatório, construído por ele em 1983, no meio do cerrado. Na ocasião, não imaginava produzir o conjunto de obras que o tornaria um artista responsável por circular pinturas de paisagem descentradas e contra-hegemônicas. Imaginava menos ainda compor obras de memória em função da acelerada devastação do cerrado, tomado, em grande parte, por plantações de soja e algodão. Tampouco previa o abandono de áreas de preservação permanente, a precariedade de espécies vegetais endêmicas, ou que nascentes presentes em suas pinturas se tornariam altamente prejudicadas por manejos impróprios, com agrotóxicos ameaçando as bacias hidrográficas. Não lhe ocorria cogitar ameaças contra o Aquífero Guaraní e a recrudescência de grilagens na região. Apenas perseguia a sacralidade da mata, reverenciada em sua pintura com a força de quem preserva esperança na supremacia da natureza. Como um guardião de expressões sensíveis da cultura indígena, o artista procede de maneira contrária ao modo como Manuella reúne sua coleção de imagens, no sentido de propor composições com base em espécies que ele pôde observar em longas caminhadas, de décadas atrás, enquanto a artista as mantêm em seu laboratório florestal em processo de recuperação. Como resultado da experiência memorial, múltiplas temporalidades permeiam seu trabalho, que investiga a monumentalidade da paisagem, introjetando o olhar do espectador ao espaço evanescente da tela, carregado de imagens que se apagam parcialmente do local onde Penha as encontrou. Enquanto observa a si coletando imagens e preservando experiências na floresta e no cerrado, o artista caminha ao passado, que ele condensa em sua obra com a luminosidade produzida com o menor uso de tinta branca, transformada em gradação tonal por meio de sua reduzida paleta de cores. Contrastada com a carga espiritual da cor magenta, presente em nervuras e raízes com pouca luminosidade, Penha codifica sua pintura, entranhada em composições complexas, nas quais a paisagem, as verdades e o espírito indígenas desconsertam o procedimento da pintura naturalista, marcada pela forte expressividade que a transforma em fragmentos de memória. Quer seja em observatórios, ações que promovem o ressurgimento de paisagens nativas em jardins públicos, ou em expedições e reflorestamentos, cada artista à sua maneira corrompe a ideia de campos gerais, introduzindo em sua obra a emblemática fórmula de Paulo Freire, para quem leituras de mundo precedem a das palavras. 

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E agora São José?

E agora São José?, por José Bento Ferreira

Daniel Caballero tem convicção de que o cerrado é o bioma originário do planalto paulista e de que foi desfigurado pela colonização e pelo industrialismo. A teoria dos refúgios, adotada no Brasil pelo geógrafo Aziz Ab’Saber e pelo biólogo e compositor Paulo Vanzolini, apenas incendeia o entusiasmo do artista plástico. De acordo com a controversa teoria, o cerrado predominou até a última glaciação, milhares de anos atrás. Depois do aquecimento, estenderam-se as áreas florestais a partir de certos redutos, ou refúgios, deixando atrás de si remanescentes do cerrado arcaico.

Por causa desses enclaves, é possível que certas regiões paulistas habitadas por povos indígenas e ocupadas por colonizadores tivessem o aspecto de savanas, o que explicaria nomes de lugares como os “Campos” de Piratininga, Santo André da Borda do “Campo” e São José dos “Campos”. Esta paisagem antiga, que os brasileiros conhecem como típica das regiões nordeste e centro-oeste, teria declinado em São Paulo por causa da introdução de espécies exóticas ao longo do período colonial. Espécies de árvores ornamentais e capins para pastagens mudaram a paisagem paulista, o que se acelerou com a expansão do agronegócio, a instalação de indústrias, a construção de estradas e o crescimento dos centros urbanos.

Porém, assim como os biomas naturais, a paisagem do antropoceno apresenta descontinuidades, refúgios onde certas espécies típicas do cerrado sobreviveram. Ao explorar esse redutos, Daniel Caballero criou o Cerrado infinito, um projeto de arte e ativismo cujos desdobramentos chegam ao SESC São José dos Campos. Segundo o antropólogo Marc Augé, podemos chamar de “não-lugares” os espaços resultantes do desenvolvimento urbano, em geral voltados para a mobilidade, como estradas, estações, terminais. No rastro dos não-lugares se formam lugares vazios, espaços ermos, terrenos baldios. Neles Daniel Caballero encontrou sobrevivências do bioma arcaico.

Ao reconstituir um cerrado paulista, Daniel Caballero não pretende reverter o progresso, mas revelar sua ação predatória evocando a imagem do mundo perdido. O fogo com o qual essa vegetação reliquiar está naturalmente acostumada é um ambíguo emblema presente nos vídeos, derivas e desenhos do artista: remete tanto à destruição da paisagem por força do progresso desenfreado quanto ao ressurgimento dela por meio do trabalho de arte.

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Nosso lugar é caminho

Nosso lugar é caminho, por Bernardo Mosqueira, Fevereiro de 2017

(ao meu amor)

Geografia é a área do conhecimento que estuda a paisagem formada pela relação entre os sistemas de ações ou práticas sociais do humano e o sistema de dispersão de objetos no mundo. Muito além de um conjunto de características morfológicas, a geografia deve ser entendida como a atividade constante de criação de encadeamento lógico sobre a ordem espacial das coisas. É por meio da pesquisa geográfica (na relação entre espaço, sentido e valor, por exemplo) que podemos produzir conceitos para uma teoria social sobre contemporaneidade de forma a construir, também, a própria transformação do mundo que habitamos.

Tudo o que o humano realiza na superfície da terra, ou seja, toda expressão da técnica que transforma fisicamente a paisagem a partir da própria paisagem, acontece para atender às necessidades humanas mais fundamentais, como nutrir-se, abrigar-se, relacionar-se, reproduzir-se, movimentar-se, ter consigo objetos úteis, dar sentido a si e às coisas etc. O que podemos encontrar quando examinamos atenciosamente o espaço que o humano construiu para lhe rodear? De que forma aquilo que nos cerca está para nos ensinar sobre nós mesmos? A paisagem complexa em que vivemos é resultado de muitas camadas de história sobre o mesmo lugar, de sequências de diferentes relações entre atividade humana e estrutura física do mundo. A geografia escuta as perguntas feitas pela paisagem, composta por suas tantas marcas enigmáticas. 

Da perspectiva cultural, a paisagem é justamente onde acontece a mediação entre o mundo das coisas e o da subjetividade humana, é uma “forma de ver”, é o objeto do processo ativo de criação e significação de “perceber” o mundo. 

A presente exposição reúne frutos muito diversos dos encontros entre os sussurros das paisagens de Santos e as pesquisas de um grupo de artistas. “Geografias – nosso lugar é caminho”, é a segunda mostra de uma trilogia iniciada no Sesc Jundiaí em 2016 e que se encerrará em São Paulo em 2018. A palavra “Geografia” (que, sobretudo, é uma ciência moderna, constituída e constituinte da epistemologia hegemônica), em sua presença nos títulos das mostras, serve como metáfora à site-specificity das pesquisas realizadas.

Esse projeto resulta da articulação coletiva entre sete artistas que são atuais membros ou antigos participantes do grupo de estudos do Ateliê Fidalga, conduzido pelos artistas Sandra Cinto e Albano Afonso na capital paulistana. O subtítulo da mostra faz referência ao fato de que, entre os meses de dezembro de 2016 e fevereiro de 2017, os artistas organizaram, em parceria com o SESC e com a participação do público, uma série de caminhadas por diversas regiões da cidade, nas quais puderam praticar formas alternativas (não-científica, não-hegemônicas) de criar paisagens, de examinar o espaço urbano.

O caminhar é um processo especial de reconhecer territórios e de construir conhecimento sobre um lugar. Na deriva ambulatória, não vemos o mundo com o distanciamento de quem observa um mapa como se sobrevoasse a cidade com olhos universais. Caminhando ao rés do chão, podemos ver as marcas do tempo e da história, não contornamos os sinais da desigualdade social e da exploração do homem pelo homem, carregamos dentro de nós nossa cultura, sentimos os cheiros das esquinas, estamos igualitariamente com objetos, animais e plantas, somos menores que os muros, maiores que quase nada. 

Foi por meio do caminhar em Santos que os artistas Cristina Ataide, Daniel Caballero, Flavia Mielnik, Helen Faganello, Laura Gorski, Renata Cruz e Renato Leal investigaram essa cidade cujo desenvolvimento é entrelaçado à História do Brasil, com um fluxo de formação social e cultural complexo e cheio de dobras, que é parte insular e parte continental, diretamente ligada ao fundo do Oceano Atlântico e ao topo Serra do Mar, que contém o maior porto da América Latina e uma enorme Área de Proteção Ambiental. Os diferentes aspectos da geografia de Santos ecoaram vacantes em cada um dos artistas de maneira que essa exposição oferece ao público paisagens que são fragmentos costurados de paisagem. Essa mostra, uma reunião de olhares simultâneos e alternativos sobre o mesmo lugar, nos inspira a noção de há muitas maneiras de perceber, aprender e se envolver afetivamente com um mesmo entorno. Pois, afinal, o que será que responderemos às paisagens quando passarmos a nos permitir ouvir as perguntas que nos fazem?

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Prefácio

Prefácio Guia de campo dos Campos de Piratininga... por Bruno Mendonça 2016

Desde o início de sua produção artística, ainda numa fase mais voltada para a linguagem do desenho, e ainda bastante aproximada das artes gráficas e dos quadrinhos, o que fica visível esteticamente em diversos trabalhos como “No Começo era o Verbo”, ou “Carbona”, apenas para citar alguns exemplos, já podemos identificar o interesse do artista Daniel Caballero pela complexa relação entre homem e espaço. 

Posteriormente a esta fase, após um período de aprofundamento em sua formação e pesquisa, o artista passa a espacializar o desenho em trabalhos de instalação nos quais começa a se utilizar de materiais como lixo e entulho, problematizando questões relacionadas à cidade, em trabalhos como “Começo do Fim do Mundo” apresentado no Festival de Cinema de Roma em 2007, assim como a exposição individual “Boas Maneiras: Geófagos Educados não acreditam em Linhas Imaginárias”, realizada na Casa do Olhar em 2009, e “Andando, desenho, linhas imaginárias que preenchem o espaço com percursos Inúteis”, no Paço Municipal de Santo André, no mesmo ano.

Estas instalações e intervenções deste período já revelam também um novo procedimento operado pelo artista, os site-specifics, que surgem desta relação mais analítica de Caballero com o espaço e a paisagem. Isso se torna mais evidente no projeto “Não Pise na Grama ou Arcádia” (2011), realizado no contexto da exposição coletiva “Aluga-se”, em que diversos artistas ocuparam uma casa no bairro de Pinheiros que se encontrava com problemas de locação a fim de problematizar o início da onda de especulação imobiliária da cidade de São Paulo. 

Poderíamos afirmar que é neste momento do desdobramento da pesquisa do artista, mais especificamente em 2012, durante a exposição “Viagem pitoresca através do espaço da minha Casa” realizada no Programa de Exposições do Paço das Artes, que Daniel Caballero começa a apresentar questões que irão leva-lo à concepção do projeto “Cerrado Infinito”, pois é neste momento da pesquisa a partir do estudo sobre os terrenos baldios, que o artista começa um convívio constante com o “cerrado paulista” que praticamente desapareceu após anos de desmatamento dessa vegetação com o movimento desenvolvimentista da cidade de São Paulo. Aparentemente uma grande parte da cidade teria sido este cerrado um dia, uma paisagem diferente da densa floresta tropical presente na Serra do Mar, e formada de campos arbustivos baixos que se apresentavam altamente propícios para a urbanização.

Este processo desenvolvimentista se conecta com um viés ocidental antropocêntrico e que se intensificou na era moderna a partir de uma lógica industrial e maquínica com o desenvolvimento capital, gerando uma lida quase delirante do homem com seu meio. O projeto “Cerrado Infinito” abre então na produção de Caballero a articulação de um repertório mais complexo a partir dessa reflexão sobre esta postura do homem em relação ao espaço e à paisagem, a partir desta espécie de “metáfora” do Cerrado, traçando relações com o presente. 

Caballero inicia então neste contexto, a ativação do espaço da Praça da Nascente na Zona Oeste de São Paulo, como uma espécie de laboratório e zona de criação, realizando neste ambiente uma série de práticas como trilhas, caminhadas e ações de plantio com espécies da vegetação do cerrado paulista, ainda existentes, assim como desenhos, fotografias e vídeos, desdobrando então a pesquisa para um grande work in process. O artista já havia apresentado parte disso em instalações, como nas exposições “Expedição Botânica entre Avenidas Paulistanas” e “Land Art, ou, Onde podemos construir Montanhas?”. Mas agora seu trabalho ganha um tom mais hermético e conceitual e passa também a se colocar em uma linha tênue entre arte e ativismo. O espaço da Praça da Nascente se torna então uma espécie de zona de resistência e sobrevivência que abre possibilidades de reflexão sobre o espaço e a paisagem na contemporaneidade, seja em um âmbito macro ou micropolítico. 

Com o projeto “Cerrado Infinito” o artista passa a se relacionar de forma mais efetiva com uma rede de artistas contemporâneos que têm mantido procedimentos ligados aos artistas da segunda vanguarda do início dos anos de 1960 e 1970. Estes artistas contemporâneos têm de certa forma dado continuidade a essas práticas e linguagens, mas em muitos casos os atualizando. Práticas artísticas essas que lidam com os binômios arte-geografia ou arte-natureza no contexto contemporâneo. Estas práticas têm sido nas últimas décadas ativamente investigadas por pesquisadores do campo das artes a partir de abordagens transdisciplinares como é o caso no Brasil da pesquisadora Renata Marquez. 

A partir destas questões ao analisar o trabalho do artista resgatei um filme paradigmático para mim, “Fitzcarraldo” do diretor Werner Herzog. No filme o personagem Brian Sweeney Fitzgerald ou “Fitzcarraldo”, como era chamado pelos nativos da região de Iquitos, no Alto Amazonas, sonha em construir uma ópera nesta região. Anteriormente Fitzcarraldo já havia investido numa Estrada de Ferro, a Transandina, e havia falhado. Para tentar conseguir recursos com um novo empreendimento, pensa em criar uma fábrica de gelo nos trópicos. Graças a esses negócios improváveis, ele foi chamado de o “Conquistador do Inútil”.  

Finalmente, em uma determinada parte do roteiro, Fitzcarraldo consegue dinheiro e compra um grande barco fluvial, tentando encontrar uma nova rota para transportar borracha, de terras que conseguiu a autorização governamental para explorar. Com o navio, Fitzgerald se dirige ao local onde quer explorar a borracha. Alucinado, transpõe morros e matas com o barco, à custa de vidas humanas e muito sofrimento. 

Estas pulsões entre distopia, atopia e utopia presentes no filme de Herzog revelam essa relação burguesa, do homem ocidental com o espaço e a paisagem, presente nos processos de exploração e colonização de um passado não tão distante. A filósofa Anne Cauquelin em seu conhecido livro “A Invenção da Paisagem”, traz algumas considerações interessantes neste sentido; ela aponta para uma postura controladora do homem moderno em relação ao seu entorno, como uma forma de construir uma realidade social e um discurso que funcionará a partir das lógicas de poder. Para Cauquelin, é na Idade Moderna que se inicia essa construção, que é passada por filtros simbólicos e antigas heranças, ou seja, para ela só vemos o que já foi visto e o vemos como deve ser visto. Essa normatização, hegemonização e homogeneização se tornaram formas irreversíveis e cristalizadas no funcionamento de toda a sociedade, mas que têm sido repensadas por diversos agentes desde a primeira metade do século XX e de forma ainda mais intensa da segunda metade do século até a contemporaneidade. 

O projeto “Cerrado Infinito” é dessa forma um reflexo e sintoma deste momento em que se busca uma reconfiguração destas estruturas, assim como a criação de “outras paisagens”. 

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Posfácio Guia de campo dos Campos de Piratininga... por Jailton Moreira 2016

“Quanto ao projeto Cerrado Infinito penso nele como um ato de resistência utópica. Toda utopia é burra, tem um lado cego. Porém, é impossível fazer um trabalho potente em arte sem uma utopia. Istosignifica que não é mais esperto aquele que consegue colocar as luzes do entendimento sobre todas as zonas possíveis de uma ideia. Ao contrário, é aquele que consegue cercar e deixar latentes suas zonas de sombras e imprecisões. É infinito porque nunca terminará, afinal nenhum cenário morre por inteiro. É infinito porque o trabalho artístico tem algo de Sísifo - um tipo de obrigação que quando aparece e se impõe, se mostra incontornável. É infinito quanto a escala - ele tem bordas imprecisas. É infinito porque o projeto, nunca será concluído mesmo se inacabado ou abandonado, vai continuar reverberando. É infinito porque é processo.”

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Posfácio
Tóxico Trópico

Sobre Tóxico Trópico por Vanessa Badagliacca 2015

Desde as grandes navegações na Era do Descobrimento, especialmente na Europa, os trópicos têm sido associados ao desconhecido, com a mesma ideia de viagem e exploração até uma natureza não contaminada, outras civilizações, que pelo único fato de serem diferentes, legitimariam o fato de serem moldadas á mesma imagem e semelhança das que "as teriam descoberto". No século XXI, esse aspecto exótico original para Daniel Caballero, que cresceu em São Paulo, não faz conotação ao Trópico de Capricórnio, que atravessa o mesmo estado Brasileiro. A própria palavra sugere uma espécie de caminho lingüístico no qual a inicial "e" cai, de fato o trópico não é mais exótico, não estando longe, nem em um exterior indeterminado. É uma terra de asfalto e concreto trilhado dia a dia, e as seis letras restantes não ficaram fixas ao longo do tempo, mas movidas pela inversão da primeira parte e deixando apenas o sufixo do adjetivo para formam um outro adjetivo: "tóxico".

O conjunto de obras da exposição Tóxico Trópico apresenta, no entanto, um cenário de encontros e confrontos, construção e destruição, formado pela experiência pessoal do artista no território. Além disso, olhando para as obras de Daniel Caballero, às vezes é possível encontrá-lo retratado por si mesmo como um botânico, observando os vários espécimes com o objetivo de dar-lhes um nome e um aspecto, ou muito melhor parecendo questionar se uma presumida d (en) ominação continua tendo importância. Da mesma forma, que expedições realizadas á partir do século XV direcionaram-se ao chamado “novo mundo”, ele segura lápis e papel em missões de investigação naquilo que constitui a sua rede urbana cotidiana: a cidade de São Paulo. Em um de seus trabalhos é possível ler: "Enquanto ando, descortino um cotidiano de maravilhas”, da série Expedição Botânica de 2014.

Assim, ele se torna um botânico da calçada, uma das principais características pelas quais Charles Baudelaire descreveu o flanêur. Nessa figura, o poeta francês identificou o artista que percorre a cidade, que por sua visão destacada, é fundamental em seu papel de tentar entender e representar o fluxo dinâmico pelo qual a cidade da vida moderna e industrializada se movimenta. No ato de caminhar como prática estética e crítica - como diria Francesco Careri - Daniel Caballero observa e ás vezes deixa rastros de sua passagem com intervenções efêmeras nas ruas, que podem ser notadas ou não. Da mesma forma, acontece com o crescimento descontrolado da vegetação, que em meio ao abandono e à indiferença, busca espaços de existência e resistência no meio da construção feita pelos humanos.

Este tipo de paisagem chamada por Gilles Clément de “terceira paisagem” em seu Manifesto du Tiers Paysage, ( Manifesto da terceira paisagem ) relembrando os Tiers-État ( terceiro estado ) compostos pelos camponeses, trabalhadores e burgueses durante a Revolução Francesa e referindo-se ao panfleto do clérigo Seyès onde foi reivindicado:: "O que é o Terceiro Estado? Tudo. O que tem sido até agora na ordem política? Nada. O que isso pede? Para se tornar algo. ”Sendo expressão nem do poder nem da submissão a ele, oferecendo abrigo para a biodiversidade, a terceira paisagem aparece como o sujeito privilegiado da obra de Daniel Caballero, que está ciente de que cada vez mais na cidade não há lugar para este crescimento descontrolado e - podemos acrescentar, citando Saskia Sassen - “Os espaços públicos são na verdade melhor descritos como acesso público do que público”.

Nessas ações botânicas itinerantes, o artista parece subverter hierarquias, ordens, genealogias. Ele nos mostra uma planta que cresce dentro e fora de um vaso; árvores que vivem no meio de prédios e carros emergindo da vegetação; árvores que seguem uma intrincada sucessão de cabos transportadores de eletricidade de um lugar para outro, tornando-se árvores elétricas desafiadas figurativamente, para andarmos com outros sapatos, como as 15 Árvores, da série, “Try walking in my shoes”, de 2015, que ecoa um verso de Depeche Mode, retratando 15 árvores desenhadas em bandeirolas geralmente usadas para escrever slogans em manifestações públicas.

Por fim, no tríptico que dá nome à exposição, a osmose entre natureza e cultura é completa (Tóxico Trópico # 1 | # 2 | # 3, 2015). As palavras dos artistas que em muitas obras são parte integrante de toda a imagem, deixam aqui espaço para traduções portuguesas de dois romances Franceses, escolhidos por serem obras-primas do patrimônio ocidental (Eugenie Grandet, 1833 de Honoré de Balzac, e Os três mosqueteiros, 1844 de Alexandre Dumas ). Aparentemente coexistindo, natureza e cultura apresentadas neste tipo de deserto rude, aparecem como forças antagônicas, onde afinal a força dominante da natureza fagocita os pilares da humanidade, em sentido físico e metafórico. Pela violência e, inversamente, o sublime neste tríptico como em outros dos trabalhos apresentados, uma lembrança da Carta sobre a educação estética do homem (1794), de Friedrich Schiller, ocorre:

No entanto, enquanto a natureza rude, que não conhece outra lei do que correr incansavelmente de mudança em mudança, ainda reterá demasiada força, opondo-se por seus diferentes caprichos essa necessidade; por sua agitação a esta permanência; por suas múltiplas necessidades a esta independência, e por sua insaciabilidade a esta sublime simplicidade. Será também preocupante reconhecer o instinto de brincar nas suas primeiras tentativas, vendo que o impulso sensual, com seu humor caprichoso e seus apetites violentos. É nesse relato que vemos o gosto, ainda grosseiro, de agarrar o que é novo e surpreendente, a desordem, o aventureiro e o estranho, o violento e o selvagem, e voar do nada tanto quanto do nada tanto da calma e da simplicidade. (Trecho da carta XXVII)

Em ‘Tudo o que vejo é meu’ (2014) acalma e a simplicidade da violência e da desordem selvagem também caracterizam a paisagem filmada e atravessada por uma visão em movimento. Numa espécie de processo apocalíptico e sangrento, a preto e branco, com tonalidades vermelhas, parece que a conquista daquilo que todos vemos ( uma paisagem de vegetação no fundo) passa por uma inevitável apropriação que implica a sua destruição, construindo-se sobre ela. Mas quanto mais cresce a construção feita por todos nós,, mais perdemos o poder de ver e mover. Como a última frase deste vídeo salienta: "Nós só podemos andar quando nossas mãos forem livres”.

Bibliografia:
Careri, Francesco, ​Walkscapes. El Andar Como Pratica Estética. Walking as an Aesthetic Practice,​ Barcelona, Editorial Gustavo Gili, SA, 2002.
Clément, Gilles, ​Manifeste du Tiers paysage​, Paris, Éditions Sujet/Objet, 2004.
Sassen, Saskia, “Public Interventions: The Shifting Meaning on the Urban Condition”, ​Open​, n.11, 2006, republished in Jorinde Seijdel and Liesbeth Melis (edited by), ​Open! Art & Culture and the Public Domain 2004-2012​, Amsterdam: NAi Publishers i.c.w. SKOR | Foundation for Art and Public Domain, 2012.
Schiller, Friedrich, ​Letters Upon the Aesthetic Education of Man​ (1794), Blackmask Online, 2002.

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Tudo que vejo é meu!

Sobre Tudo que vejo é meu! por Andrés Hernández 2015

 

Você já subiu a ladeira de uma montanha? Por qual dos lados da montanha? Tem certeza? Como você decide qual é o lado ideal?

Esses são, entre outros, os questionamentos levantados por Daniel Caballero na exposição Tudo o que vejo é meu, na sede do Museu de Arte de Ribeirão Preto (MARP), mostra que tem como precedentes Viagem pitoresca no espaço arredor da minha casa, instalação no Paço das Artes, em 2012, e a exposição Terra non descoperta, na Galeria Virgilio, em cartaz até 4 de junho de 2015, ambas em São Paulo. 

O artista classifica as montanhas em três tipos:

A do cerrado, construída com plantas do cerrado. Em exposição na Galeria Virgilio; 

A das espécies invasoras como capim africano, milho transgênico e plantas abandonadas pela floricultura, que invadem o espaço do que era originário. Plantas catadas na rua e em espaços públicos da cidade de Ribeirão Preto, na exposição Tudo o que vejo é meu, aqui no MARP a partir de 29 de maio; 

E a do ambiente tropical: orquídeas e plantas originárias da Índia que manifestem o exotismo no cotidiano. Ainda como projeto a ser executado.

As montanhas dos três tipos estruturam-se como quebra-cabeças arqueológicos, imaginando reconstruir o bioma cuja origem plástica começa na coleta sistemática que o artista faz de sementes, mudas de plantas e pedaços de galhos que depois planta no seu jardim ou nas instalações. Assim, Caballero idealiza a construção das montanhas não como uma reconstituição fiel, mas imaginária, pois nas montanhas construídas o artista nos coloca na situação de decidir qual dos lados escalaremos presencial e individualmente e/ou através de referências e questionamentos sociopolíticos a partir de representações estéticas.

Um paralelo pode ser feito com o projeto visionário do arquiteto francês Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc(1814-1879), um dos primeiros teóricos da preservação do patrimônio histórico e considerado um precursor teórico da arquitetura moderna. Para restaurar o Mont Blanc devolvendo-lhe sua grandiosidade original, ele projetou uma montanha a partir de uma montanha, e o mais extraordinário: pensou em transformar o cume da montanha em obra de arte. Uma nostalgia utópica para um futuro luminoso. Uma fantasia que combina ciência e sonhos, românticos delírios originados de talento e conhecimentos. Caballero sugere, também, construir uma montanha ideal entre a Virgilio e o MARP, mas ela estaria direcionada, sobretudo, à reflexão a partir de um raciocínio plástico. Nessa concepção metafórica, o artista nos alerta também para a expansão do cruel tratamento dado à natureza, incluindo a fragilidade das montanhas perante sua própria imobilidade e a mobilidade destrutiva que o homem lhes dá quando constituem uma fronteira para a expansão da modernidade. Caballero explora igualmente as relações entre a arquitetura e a paisagem destinada a interferir, redefinir e modificar os lugares previamente regulados pelas atuações arquitetônicas, além daquelas marcadas por um caráter pontual, crítico e efêmero associado ao enfrentamento com a ordem política, social, institucional e midiática. Narra-se a relação das montanhas entre si e com quem as vê. 

Se Viollet-le-Duc considerava o Mont Blanc uma ruína da qual era possível recuperar a forma, tal como na restauração de um monumento, Caballero dá forma a sua montanha a partir de ruínas, bem como das ideias de preservação e restauração de monumentos em processo: os resultados da ação do tempo e do homem sobre a natureza. 

Essa mobilidade, sugerida e imaginada para um entorno aproximado de 300 km de distância (entre São Paulo e Ribeirão), estabelece, ao mesmo tempo, um limite imensurável onde se insere a subjetividade do ser humano a partir dos elementos que cada um dos lados da montanha pode delimitar. Quanto há de movimento interno? Que tipo(s) de movimento(s) acontece(m) entre as montanhas? O que seria essa paisagem intermediária? O começo da ladeira em cada lado (São Paulo e Ribeirão)? O lado de lá pode ser ao mesmo tempo o de cá, e vice-versa: um movimento geral. O artista provoca, assim, uma situação sensorial de reconhecimento espacial e temporal no pensamento imediato do espectador. Constrói um monumento imaginário à natureza feito pela visão e experiência individual. Cada indivíduo imagina o espaço e a natureza sem nunca se ver nem prever o fim! Mas isso é impossível. Trata-se de um monumento na escala humana. 

Nesse espaço imaginado entre montanhas, inclui-se a discussão sobre a avaliação das formas para entender o legado dos índios, o respeito a sua cultura ancestral, sem aquilo de “Vamos salvá-los!”. Salvá-los de nós mesmos, não? Um alerta ao fato, por exemplo, de que os materiais que os índios utilizam tradicionalmente já são escassos ou não existem nas reservas: o sapé, que é utilizado na construção   de telhados, está extinto, tem que ser trazido de outros lugares. As reservas demarcadas viram quase zoológicos humanos.

Caballero delata também a guerra invisível a que o homem induz a natureza, por exemplo, o capim que queima e ressuscita rápido e se sobrepõe ao lugar das plantas nativas, numa guerra silenciosa. A transformação da paisagem em outra paisagem. E questiona: como reconstituiremos as reservas florestais?

Na exposição, além do caudal de relações subjetivas particulares que sugere, o artista nos provê informações que ajudam a reforçar as sensações, e nos conecta com acontecimentos visuais possíveis entre as montanhas por meio do vídeo e das amostras de terra. É uma conexão com histórias distantes e com o desconhecido.

O vídeo Tudo o que vejo é meu, 8’, que dá título à exposição, foi produzido a partir do percurso do artista pela chapada dos Veadeiros, em Goiás, e sugere que essa mobilidade intermediária seja imaginada. A terra cortada com a paisagem de fundo, o brilho do céu e os contrastes do tudo vermelho ou vermelho-preto-e-branco fazem uma conjugação da paisagem original no plano de fundo com o real, resultado da mão do homem, num primeiro plano que gera uma cartografia cromática mutante. É um autocontraste estético que se acentua com as frases inseridas pelo artista, intensificadoras dessas relações contraditórias. Por exemplo, “Minhas pegadas escrevem a terra”. São caminhos que vão sendo segmentados, onde o que resta são  corredores ecológicos. Relação de escala e tempo. Não percebemos o espaço e como isso muda. A tese e a antítese. Se, para os colonizadores, o convívio constante com o maravilhoso de certa forma habilitou o olhar dos portugueses a enfrentar sem surpresas a possibilidade do Paraíso na Terra, Caballero nos apresenta aqui um manifesto estético e crítico contemporâneo de valorização da natureza segundo a percepção de uma realidade social por meio da cultura e daqueles que decidem sua sorte. Esse manifesto é organizado em função da lógica de uma situação cultural, um campo expandido regido pela condição do homem em seu tempo.

Os elementos alegóricos utilizados por Caballero impugnam todas as possíveis alusões a referências representativas e, por conseguinte, a sua natureza significativa. Assim, o artista faz com que a arte continue funcionando como linguagem. Dos cortes na terra e na natureza e do percurso mostrado no vídeo brotam as amostras catalogadas de terra, intituladas Terra Firme que têm o precedente de Como escolher uma boa pedra ?, uma catalogação seriada de pedras – por exemplo, P.01. Na exposição, Caballero apresenta as amostras de terra em Lotes. Catalogados, cada lote contém terra de um lugar diferente. Exemplos: L01503, L41847. Lotes que singularizam a pluralidade de possibilidades nesses deslocamentos perceptivos e polêmicos.

A proposta pretende provocar sensações a partir de um movimento espacial, atemporal e imaginado, uma realidade inventada. O espaço representado partir do espaço vivido associado às atividades cotidianas do homem, reunindo traços que confiram novas características fisionômicas a um lugar. Caballero formata uma cartografia de planos na articulação entre a representação no espaço expositivo e a leitura crítica do espaço visualmente descrito. Uma geografia imaginária a ser decorada como um dos primeiros mapas do Brasil, publicado em 1556: o Atlas delle navigazione e viaggi, de Giovanni Battista Ramusio, que descreve a viagem do piloto francês Jean Parmentier à costa brasileira. O Atlas talvez contenha o primeiro mapa do Brasil mostrado individualmente, ainda que de forma imprecisa. A Terra non descoperta foi representada por montanhas, com a fantasiosa indicação dos rios Amazonas e da Prata nascendo num vulcão ativo, em plena selva amazônica. 

A impossibilidade de dimensionar o tamanho da montanha (que tem dimensões iniciais 200 x 350 x 250 cm, variáveis porque as plantas crescerão), por causa das transformações que o microssistema gerará durante o período da exposição, manifesta o interesse do artista em transgredir a utilização dos espaços expositivos. É uma necessidade de revolta como princípio constitutivo da arte, mesmo princípio que determinou o surgimento de um tipo de arte afastado do viciado circuito comercial, propondo aceder ao domínio do público através do estabelecimento de uma conexão a-direcional entre a cidade, o público e o espaço expositivo. Inserem-se aqui o vídeo e as amostras de terra.

Além das dimensões físicas do projeto, é importante destacar que se trata de um manifesto plástico relativo ao registro de um processo efêmero em transformação material e subjetiva como meio para divulgar uma sensibilidade contemporânea na relação com a natureza.

O artista propõe a renovação e o aperfeiçoamento da percepção, estruturando espaços possíveis para mobilizar e desenvolver o pensamento ao incentivar ao espectador a envolver-se no ato criador, num fluxo midiático de referências cotidianas transformadas em obra de arte – acentuando, assim, a diferença no modo com que reagimos esteticamente à proposta inovadora. Propõe-se, na minha opinião, diluir um único ponto de vista numa estrutura aberta à colaboração (artista/espectador = espectador), num campo ilimitado de interpretações , alternativas e intervenções. 

Assim, a proposta de Caballero para o MARP manifesta seu compromisso com a renovação e discussão da arte no tempo atual e coloca sua produção em concomitância com o posicionamento de Piero Manzoni (1933-1966): “[...] Com o surgimento de novas condições, a proposição de novos problemas, comporta, com a necessidade de novas soluções , também novos métodos e novas medidas; não se pode sair do chão correndo ou saltando; asas são necessárias; as modificações não bastam; a transformação deve ser integral”. 

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Terra non descoperta

Sobre Terra non descoperta por Douglas de Freitas, 2015

É natural que com o passar do tempo a paisagem vá se alterando. Esse processo não é exclusivamente resultado da ação do homem, desde que o mundo é mundo, processos químicos, e de sobrevivência das espécies, acarretam na mudança da paisagem. Foi apenas nos últimos séculos que a ação do homem veio de fato ter impacto sobre a paisagem, e a noção da escala desse impacto chegou apenas nas últimas décadas, com o avanço da tecnologia, e a possibilidade de observar a terra a partir de outra escala, a aérea, dos voos e dos satélites. 

Nos últimos anos Daniel Caballero voltou sua pesquisa para os extintos Campos de Piratininga, tipo de vegetação característica do Cerrado Paulista, que tinha presença intensa na cidade de São Paulo. Seu interesse veio de trabalhos anteriores, onde o artista registrava a coexistência entre natureza e ação do homem, ou natureza e construção humana. Deste processo surgiu o interesse em saber que espécies eram aquelas, que se embrenham no concreto e resistem. 

Assim nasce a exposição “Terra non descoperta”, título emprestado do primeiro mapa que mostra o Brasil individualmente que se tem notícia, realizado por Giovanni Ramusio e publicado em 1556 em Veneza, onde um território impreciso é retratado junto a monstros marítimos, e o rio Amazonas nascendo de um vulcão ativo. Assim como no mapa, realidade constatada e construção poética se misturam nos trabalhos do artista. Na entrada da exposição o artista edifica a base de uma montanha seccionada. A vegetação que a constituí são exemplares característicos do Cerrado Paulistano, colhidos pelo artista em sua maiorias em espaços urbanos, reconstruindo assim uma imagem ficcional do que seria a paisagem intocada da cidade de São Paulo.

O trabalho se concretiza em sua integridade máxima dia 29 de maio, com a construção da outra ponta em secção dessa montanha monumental invisível dentro do Museu de Arte de Ribeirão Preto. Lá a montanha chega com exemplares colhidos da região, como se ao percorrer a distancia monumental de mais de 300 km, a montanha também viajasse no tempo, saísse de um estado intocado de 500 anos atrás para chegar em Ribeirão Preto como a paisagem contemporânea. 

Na série de desenhos e pinturas de grande formatos presentes na exposição, os registros precisos da ação de resistência da natureza à cidade contemporânea dão lugar à construção de paisagens densas, construídas sobre outras paisagens, entre detalhes de plantas, plantas arquitetônicas e escritos do artista. Nesses trabalhos varias técnicas e estratégias são traçadas e sobrepostas, em um construir e apagar para então construir novamente, como nas paisagens das cidades. Ao mesmo tempo em que são caóticos, esses trabalhos ainda trazem algo de um estado meditativo de contemplação, como nas pinturas de Alberto da Veiga Guignard, ou nas pinturas orientais que Guignard tanto reverenciava. Junto as pinturas aprecem uma série de desenhos, fotos e vídeos, que se articulam para dar conta das ações do artista sobre essa paisagem que ele investiga. Aqui o registro volta a aparecer no trabalho, e reaparece de diversas maneiras, com liberdade de expressão, ao rigor realista das gravuras e mapas que registram expedições de descobrimento e desbravamento, ou ainda como estudo de botânica de espécies encontradas na cidade, tudo posto como estudo do fazer do desenho, apresentados como insígnias dos achados do artista, e mostruário de seu apuro técnico.

Se em “Viagem pitoresca através do espaço ao redor da minha casa” Daniel Caballero propõe registro de sobreposições entre cidade e natureza dentro da escala do seu cotidiano, “Terra non descoperta” tem outra escala. A escala continua a do corpo, a corpo do artista, a do nosso corpo, mas não é simplesmente um registro poético do cotidiano. Aqui o que sai da escala do presencial é imaginativo, é ficção construída pelo artista, e se desdobra em outra escala de tempo e espaço. Tudo aqui é paisagem reconstruída dentro do ideal romântico de paisagem, é a natureza tentando vencendo o concreto, se infiltrando e retomando seu lugar, num exercício de se deixar apagar, para depois voltar a construir. 

 

1 Exposição realizada em 2012 no Paço das Artes – SP, como parte da Temporada de Projetos

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Fachada 888

"Sob desígnio e suspeita, o desenho entra na paisagem e sedentária-se nas fachadas do 888,rua D.JoãoIV..." por Maria de Fátima Lambert, Dezembro de 2014

 

 

Esta paisagem é dinâmica. Preocupa-me a natureza do solo, por isso me imponho certa unidade de flora e fauna, uma ligação mineral, as articulações meteorológicas. Mas a paisagem move-se por dentro e por fora, encaminha-se do dia para a noite, vai de estação para estação, respira e é vulnerável. Ameaça-a o próprio fim de paisagem. Pela ameaça e vulnerabilidade é que ela é viva. E é também uma coisa do imaginário, porque uma paisagem brota do seu mesmo mito de paisagem. Aquilo que lhe firma a existência situa-se nas condições do desejo: o movimento entre nascença e morte. A tensão criada pela ameaça destruidora afiança-lhe a vitalidade. A árvore da Carne.  

Herberto Hélder, “(guião)” [“(script)”] 

 

1 - Sob desígnio e suspeita da paisagem

 

…na senda de Bernardo Soares, eu poderia dizer que não acredito na paisagem. Mentira. Também que a paisagem é uma mentira inventada para colmatar lacunas, intervalos de existência. Se assim fosse, a respiração poderia emanar e ser fragmento de árvores, rios, nuvens ou penhascos; também, plasmar-se em parcelas de muros em derrocada, fachadas carecendo ser acariciadas, escarpas e barrancos em desequilíbrio.

Filosofia da paisagem e iconografia da utopia são termos que emergem do projeto de pintura das 2 fachadas da rua d. João IV, que se desprendem no desenho concebido por Daniel Caballero, que se evidenciam na contemplação do transeunte disposto a ver. Nunca tanto como agora se considera a estética como campo alargado para pensar, sentir e conhecer., supondo divergências e consonâncias. Assim mesmo, a estética da paisagem é necessariamente plural pois o conceito se "ramifica", congregando conhecimentos que procedem de diferentes disciplinas. 

No pensamento ocidental, a história do tema e género da paisagem é abordado sob múltiplos aspetos, metodologias e exigindo contextos científicos, culturais, artísticos. Várias disciplinas concorrem, portanto, para o maior rigor, sistematização e ampliação de reflexões, argumentos e interpretações sobre/d[a] paisagem. 

A paisagem como invenção é, por vezes, assimilada ou confundida com a natureza, e erradamente contrastada com os conceitos, a título de exemplo, de cidade, de urbano…

Exatamente neste prisma há a ponderar a intenção, a missão e a concretização de obra que Daniel Caballero empreendeu e desenvolve.

A paisagem, na pintura e na fotografia, tanto quanto no vídeo ou cinema, é figurada e povoada por seres vegetais, animais – reais e híbridos – que se repetem ou desaparecem. A paisagem é efetivamente uma decisão humana, suscetível de ser recriada, renascida todas as vezes que o mundo a queira replicar. Na realidade, a razão de replicar é um ato constitutivo, gerador de singularidade, nunca de repetição no sentido constritor do termo. 

A paisagem nunca pode ser a mesma, nem tampouco “parecida” como fechamento e cópia, pois nem o tempo cronológico, nem o meteorológico são repetíveis. Aquilo que se vê nunca é o mesmo, o que acontece também com as pessoas que se mudam a si mesmas, de formas impercetíveis mas certas e irrevogáveis. 

A paisagem não se esgotou nas formatações convencionais, nas modalidades estereotipadas ou em recorrências. 

A paisagem reativa-se, a e em si mesma, mediante atualizações irreversíveis que ganham território na obra de artistas, cuja relevância é inequívoca. Estas considerações aplicam-se à argumentação temática sobre os elementos elencados na paisagem, por exemplo, o mar, a montanha, a charneca (ou arquitetura, os traçados urbanísticos…) como paisagem e, sobretudo, como os elementos na sua qualidade de substância, ideia e intencionalidade. 

 

 

 1- Daniel Caballero + Estudantes da Licenciatura de Artes Visuais e Tecnologias Artísticas da Escola Superior de Educação, nas Comemorações dos 30 anos do Politécnico do Porto

 

 2 - In Photomaton & Vox, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p.140

 

2 - Sob desígnio e suspeita do desenho*

 

O desenho, na contemporaneidade e no presente, assumiu uma autonomia, à semelhança do sucedido com disciplinas científicas, como foi caso, da estética relativamente à filosofia. O desenho deixou de ser considerado como fase intermedial ou preparatória para concretizar uma expressão artística finalizadora. Os artistas, ao longo do século XX, “descobriram” o desenho, muito em particular – e na perspetiva emancipatória, depois dos anos 50. Até à atualidade, tal posicionamento e convição vieram a consolidar-se através de algo tão simples quanto a decisão assegurada, fundada na intencionalidade que a move. Não importa tanto o que é o desenho (o que nele se reconhece, o que representa) mas como é. É relevante o “como” do desenhado, mais do “que é” desenhado. Constata-se a lógica, coerência, plano epistemológico que sejam implícitos, determinando a sua própria essência enquanto desenho para afirmar na atualidade (após o desenho dito contemporâneo). Envolve escolhas e deliberações lúcidas por parte dos artistas (como assinalei antes). 

A aproximação física ao desenho, para melhor o observar direciona para uma intimidade que não somente a de quem o realizou. As dimensões e técnicas, tanto quanto os seus conteúdos iconográficos (e semânticos) determinam a colocação, a postura, tudo aquilo que um corpo exige para olhar em detalhe e pormenor ou em distanciamento e perspetiva. O desenho implica, assim, uma ação por parte do espetador, tornando-o protagonista de um ato de conhecimento singularizado. O desenho constrói, por assim dizer, identidades diferenciadas perante uma mesma proposta gráfica. Ou seja, o desenho rege a constituição de uma linha de movimento do corpo do espetador, sua cativação e sequencialidade no ato de ver. [« J’ai découvert que dessiner n’était pas seulement/regarder, mais aussi toucher. » Jan Fabre] Neste sentido, “ver” um desenho será efetivamente “desenhar”, pelo movimento do corpo próprio (do espetador), um ato único de perceção visual.

A atitude de cada um direciona/orienta a apropriação do desenho como pele, conteúdo ou aparência, entre outras supostas “modalidades”, exigindo ocultamento e/ou desvelamento de algo ou alguém, consoante os casos: “The paper becomes what we see through the lines, and yet remains itself.”

O Desenho configurará, portanto, maneiras de olhar, apreender, interpretar e, por outro lado, como acima se referiu, de estar e posicionar perante, promovendo, assim, a diferenciação. Não somente cabe ler os sentidos, significados implícitos no desenvolvimento e registo do desenho – em termos morfológicos – antes haverá que (re)conhecer a linguagem do desenho em si. Pois o desenho, enquanto substância, poderá sofrer transmutações, agregando-se-lhe uma quase organicidade de elementos (versus cosmogonia): “The paper lends itself between the lines to becoming tree, stone, grass, water, cloud.”

O histórico remoto do desenho não invalida, antes vivifica (reitera) a sua pregnância na arte da atualidade, metaforicamente visível na famosa edição Vitamina D… Há que saber ultrapassar as circunstâncias restritivas, os estereótipos implícitos em modelos de ensino artístico, subvertendo-os e antecipando-os.

Sendo que, então: “…Poderia dizer a prática do desenho como principio e fim da obra.” 

 

*Esta alínea corresponde a uma adaptação do meu texto publicado  in 500 anos de Desenho na Coleção da FBAUP, Porto, MNSR/FBAUP, 2012.

 

 Margaret Davidson, Contemporary Drawing – key concepts an techniques, N.Y., Watson-Guptill, 2011.

 

3 - Sob desígnio e suspeita de Tóxico Trópico, desenhos de Daniel Caballero 

 

Convoquei a paisagem e o desenho, antecipando o que seja uma magnífica “joint venture estética” na obra de Daniel Caballero. Por certo, quer a paisagem, quer o desenho são habitados, neles residindo alteridades e sujeitos únicos. Neste caso – projeto das fachadas – a paisagem entrou dentro do desenho que dele sai para ocupar o seu lugar nas fachadas das casas erguidas como paisagem urbana. Paisagem e desenho protagonizaram uma celebração que durou uma semana e demorará o tempo que persistir. 

A obra de Daniel Caballero coincide numa persistência que desafia as dominantes destrutivas do tempo, anulando as previsões que os hábitos e rotinas instalam, subvertendo-lhes o destino. Os seus desenhos adquirem diferentes proporções e cumprem objetivos múltiplos. Podem subsistir emoldurados ou atravessar vidros e tornar mais opacas as paredes e muros. Alteram o aspeto de ruas, casas, hospitais, estações de metro e outros não-lugares que existam e o provoquem como desenhista e cidadão.

… apenas em raros casos surgem autorrepresentações. Quando elas se vêm tomam uma proporção de flânerie que é uma das matérias-primas da sua produção e pensamento. Todavia, a sua pintura desenhada desenvolve-se, partindo da convicção da pessoa humana na cidade. Eis o âmago do seu pensamento estético: plasmar pelo desenho tudo aquilo que visibilize o quanto a cidade é desconstruída, para o humano nela soçobrar incondicionalmente. A figura humana determina a denúncia que subjaz na paisagem, pela sua persistência, ao resistir, subsistir e demorar…assim contrariando quase todos os desígnios de uma excesso de civilização. A figura na paisagem não é epidérmica ou aparencial, está entranhada.

Pedras, arbustos, vegetação espontânea, árvores, escadas, estruturas e fundações de casas, muros, fachadas…trata-se de afirmar uma organização entre elementos da natureza e edificações, arquiteturas concebidas pelo humano em períodos de tempo que se sequencializam na cidade. 

A estética das ruínas, numa visão pouco idílica, é uma das referências incontornáveis ao observar a sua obra. Estamos habituados a pensar sobre o primado desta arqueologia da memória das civilizações, quanto à sua dimensão patrimonial (em distintas tipologias, do edificado ao imaterial humano) e mapeiam-se estilos e afinidades na história da arte ocidental: dos frescos de Pompeia e Herculano, passando pela pintura romanticista e chegando às correntes e modos fotográficos que cercam as ruínas – valências históricas, artísticas, estéticas e poéticas. Assim, a deambulação orientada (quase paradoxo, pois que consignada a um escopo societário que reage contra a invisibilidade do humano na urbe) de Daniel Caballero cumpre a lucidez em traçar caminhos vividos pelo seu corpo que depois transporta no desenho os elementos visionados que são matéria mais gritante do que foi olhado e visto. 

As ruínas de Pompeia e Herculano tornaram-se marco simbólico, pela tragédia que as originou mas, sobretudo, pela complexa panóplia de elementos, artefactos, pinturas e citações antropológicas e culturais que se revelaram. Essas ruínas povoam o nosso imaginário. Pode falar-se de um imaginário das ruínas que organiza a conceção artística de autores, rem ramificações geracionais – enquanto elementos visuais e com uma valência plástico-visual. Também, impregnadas de uma poética, nele fundada, com transposições emblemáticas e ou subjetivistas para as identidades autorais…No caso do desenhista brasileiro, constato tudo isso, acumulado à questão atualizada de saber as circunstâncias do seu tempo – em que vive – pretendendo elucidar e agir sobre as perversões pequenas que incendeiam os direitos e qualidades da vida humana – por si e em sociedade. As ruínas são o topos do humano em Krisis para recuperar o termo husserliano. Que carece derrubar para expandir as “ruínas”… e evitar novas (mas inevitáveis) Pompeias...

Daniel Caballero percorre as ruínas que estão em devir, numa cidade onde a rapidez na mudança das estruturas habitacionais e arquitetura em geral é incontrolável. Pretende fixar nos seus desenhos essa mudança em latência, preservando uma memória anônima de lugares, edifícios e suas gentes em condição de quase invisibilidade…No ano passado, quando da sua intervenção na QuaseGaleria, o artista brasileiro trouxe para dentro da Sala, elementos vistos pelos janelões. Arbustos, muros em derrocada, árvores e terra adquiriram uma outra condição de vidência, deixando-se alastrar pelas paredes, portas, lambris e bandeiras. As camadas de tinta preta e tinta branca sobrepuseram-se criando modulações, volumetria, profundidade e espessura. Ainda coube decidir, no soalho de madeira, três livros de onde emergia tridimensionalidade em hastes de vime cruzadas com fios entrelaçados. 

Neste projeto de “intervenção artística em espaço público do Politécnico do Porto”, em 2015, o seu desenho estabeleceu-se numa rua da cidade, onde o betão também existe mas obviamente não atinge a magnitude, o excesso de urbano que carateriza São Paulo. O homem do concreto – paulista e tudo – por entrepostas condições, propiciou a gestação e emancipou a obra, tendo-a visto partilhada. O desenho possui um valor acrescido ao artístico que é o educacional. Sabe-se que promove a criatividade, gerando condições de uma autoidentificação que se plasma, ao exteriorizar a conciliação do corpo, pensamento em dinamismo vital. 

Se desenhar agudiza a capacidade de olhar para ver, no caso de Daniel Caballero, a necessidade em olhar, rasgando incómodos na paisagem urbana, induz ao desenho. São vasos comunicantes. O desenho é instrumento cognitivo, que possui em si a própria substância, explanando-se em conteúdos que pode importar de plataformas diferenciadas para além de possibilitar o exercício de uma auto-crítica, auto-referencialidade e auto-documentação criativa…Os caminhos do desenho, na atualidade são díspares, iluminando territórios do eu, do outro e dos outros. 

“A estrada corta a planície em linha reta até ao horizonte. Não há nada na paisagem desértica. Apenas o mato rasteiro que cresce no chão do cascalho.”

 

 

 4 - John Berger, Twice Drawn – Modern  and contemporary Drawings in context, The Francis Young Tang Teaching Museum and Art Gallery at Skidmore College and Prestel Verlag, Munich, London, N.Y., 2011, p. 182.

5 -  John Berger, Op. Cit, p. 182.

6 -  Paulo Reis, “O Contracto do Desenhista”, texto para a exposição coletiva in Plataforma Revolver, 2008.

 

4 - Autorias em estado de partilha e efemeridade

 

"Sim, a obra artística é sempre o resultado de um ter estado em perigo, de ter chegado ao fim numa experiência, aonde já ninguém pode ir mais longe." 

(…)

 

“Quanto mais se avança nela, a vivência torna-se mais próxima, mais pessoal, mais única, e ao fim, a obra artística é a manifestação necessária, irreprimível, o mais definitiva possível, de tal singularidade…”

 

Rainer Marie Rilke, "Cartas sobre Cézanne"

 

O processo empreendido implicava a confrontação entre as definições de autoria do desenho - por Daniel Caballero - e autoria da pintura do desenho [tomado como referência convertendo-se em símile?] por parte dos Estudantes de Artes Visuais da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto que assumiram o processo de execução (livre). Esta conversa de autorias em consonância desenrolou-se sob auspícios de uma articulação exemplar. Apesar de existir um oceano de permeio e a impossibilidade física de um diálogo presencial, o diálogo flui, cumprindo propósitos metodológicos, artísticos, estéticos e pedagógicos. Não se tratou de estabelecer ou transmitir instruções fechadas para o desempenho, antes se ocuparam todos na partilhar de motivações educacionais para uma e outras sociedades que, por vezes, negligenciam o seu património, memória e futuro, em paralelo e nas diferentes aceções e tipologias: património arquitetónico, património cidade (e urbano), património humano identitário, património natural, património ambiental, património memorial…enfim todos subsumidos e em prol de um património simbólico – coletivo e que, através de uma ação consentânea e de resiliência, congrega os reinos (síncronos) do real e do imaginário. 

Ação conjunta implicou uma cumplicidade testada nos primeiros dias, quando da definição de estratégias e procedimentos; houve que acertar amplitude de gestos e extensão de pinceladas, de modo a que o desenvolvimento de uma pessoa, coincidisse com o traçado da outra. Mediante uma fragmentação do desenho em partes constitutivas, cada pessoa ficou encarregue de cumprir um trecho de desenho, convergindo para o desenho/pintura como todo. A espessura do desenho acumulou-se à densidade desigual da superfície das fachadas. As varandas, umbrais de portas e janelas, as reentrâncias do sótão ou as caleiras serviram de cenários, desacreditados estes elementos como obstáculos. Assim se instituiu uma outra visão da rotina percorrida ou hierática de quem demora a olhar. Pois que as ruínas apossaram-se da pintura, propondo novas derivas que se alongam, sobem nos traços compactos ou na fluidez de linhas volumetrizadas. Afinal, as fachadas em pedra são matéria densa que, apesar do estado de degradação, guardam os motivos refletidos do pensamento do artista brasileiro e das efabulações impulsionadas nos portugueses. 

As fachadas absorveram camadas de tintas sobrepostas ou ladeadas, apresentando uma espessura texturada que perfila o alçado, os contornos em ângulos curvados pela perceção de quem vai circulando na rua, sobe ou desce a calçada. É um desenho pintado e enorme que acompanha os moradores do bairro, surpreendendo-os. 

 

“Les ruines ne sont pas seulement des bâtiments dégradés, elles participent du paysage rêvé. »

 

Trata-se de ruínas que desafiam o desmoronamento físico, aplaudindo-o no que possui de fruição estética e des-incómodo de gente indiferente.

Trata-se de um caso de memória, conjugando as razões do individual e do coletivo com as atribuições do imaginário – quer individual, quer coletivo. 

Trata-se de saber localizar-se. Trata-se de ser capaz de vaguear, sem perder a noção do pensamento crítico, encarando o mundo. 

Trata-se de aceder a uma plataforma de conhecimento que é raro pois implica a generosidade mútua e a perseverança de muitos. 

Trata-se de construir na superfície das fachadas, uma volumetria desigual mas uniforme, que ao pintar apenas foi passível de ser vista, à distância. 

Trata-se de um projeto de paisagem reconfortada pela presença de consecuções imprevistas e sonhos resilientes. 

Trata-se de continuar, manter desperta a ação artística, agindo como convictos “operadores estéticos” (parafraseando José Ernesto de Sousa).

 

7 -  Nelson Brissac Peixoto – Cenários em ruínas, Lisboa, Gradiva, 2010, p.79

 

8 -  Dominique Fernandez, Ferrante Ferranti et Patrice Alexandre, Imaginaire des Ruines, Paris, Actes Sud, 2009, p.16      

 

* Texto realizado por ocasião da curadoria da ação conjunta de Daniel Caballero com os estudantes do Politécnico do Porto, na fachada do prédio 888 da R. Don João IV, Porto, Portugal - 2015. 

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As raizes são importantes

As raízes são importantes por Mariaelena Cappuccio, 2015

Acaba tudo com a morte mas no meio está a vida, escondida debaixo da terra, do ruído e do silêncio, do sentimento e da emoção. As esporádicas rajadas de beleza e depois a miséria das ruínas produzidas pelo homem. O caminho é o seguinte: beleza, ruínas, re-edificação em algo de mais útil, supostamente. A geografia do mundo sempre mudou e, em São Paulo, temos noção dessa rapidez, excessiva talvez, seguindo os passeios investigadores do Daniel Caballero. A necessidade de construir algo de novo, o delírio divino do homem de modificar a paisagem para viver melhor, tirando espaço, criando voragem na terra, mexendo nela, desnorteando e tirando os seus pontos de referência geográfica. O irreprimível impulso de destruição decorre da atitude delirante de interpretação do mundo. Nesse processo todo, a falta de uma Geografia, a contínua re-construção da natureza reflecte a vontade “sobrehumana” de dominar. Dominar uma natureza que, sendo assim, aparentemente domesticada apesar da sua magnífica omnipresença. A morte está incluída no processo, como as raízes, que, pelos vistos, podem não estar bem radicadas na profunda terra, mas proliferam na superfície. Modifica-se o olhar do pedestre que convive com natureza “concreta“ - construída. Esse choque visual (e auditivo) tornou-se a normalidade paulistana documentada nas pinturas efémeras do Daniel. Desenhos que contemplam com olhar desencantado (quase distante) a natureza, um olhar contemporâneo, do concreto. No acto da observação, Caballero foi inspirado pelos primeiros naturalistas que olhavam a natureza com curiosidade analítica, catalogando as diferentes espécies (naturalmente selvagens).

E agora? A naturalidade da natureza está a modificar-se. Na cidade encontra-se uma nova paisagem com novas florestas, pedras e elementos naturais colocados pelo humano. Paisagem do concreto, montanhas. Novas perspectivas que se perdem num horizonte que no final não existe mais pois se cria uma flora cheia de novas plantas: os prédios-árvores. Uma floresta que corta assim o respiro. A realidade ruidosa da cidade vem criada a partir duma “tabula rasa”, uma parede cândida. Ai começa tudo, no princípio em mudo, com muito cuidado, quase com um traço incerto, depois acontece algo, o pincel esta beirado de verniz preto e tudo se torna confuso quase violento no seu ser. A claridade do branco vem manchada da sujidade das ruínas, pedras, pranchas de madeira e paredes partidas que ainda resistem em equilíbrio, que ameaçam cair num momento qualquer. Processo violento que cria um movimento sinuoso, misturado com a terra - físico. Daniel entra com o próprio corpo dentro da sua própria pintura, sendo quase engolido pela parede e pelas pedras, criando no final novas paisagens efémeras, que vão continuando a própria evolução em algo de diferente, melhor supostamente. A violência visiva, talvez emotiva que a cidade transmite com essas mudanças inesperadas vão ser re-criadas do Daniel quando pinta. Parece que ele também faz parte do processo de destruição, que muda tudo e que nos deixa com uma nova visão da realidade. Talvez tudo isso nos sirva para apenas perceber os mecanismos que criamos colectivamente andando por cima de nós mesmos.

 

* Texto realizado por ocasião da curadoria da exposição Tóxico Trópico de Daniel Caballero, na Galeria Carlos Carvalho, Lisboa, Portugal - 2015.

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Demiurgo

Demiurgo Caballero por Renato Pera, 2015

 

“A cidade dá a ilusão de que a terra não existe”

Robert Smithson

 

A meu ver, o que anima a obra de Daniel Caballero é uma inclinação à entropia, um grau extremo de desordem e imprevisibilidade, em que a matéria de seu trabalho tende a um estado de falência, de saturação e de dissolução de limites. Aí reside o maior interesse de suas proposições e, especialmente, de seus procedimentos. Muitas vezes, essa tendência é o resultado de gestos conscientes – ou nem tanto - em atitudes de auto-sabotagem: se o desenho está demasiadamente bonito, se apresenta um prazer visual confortável, algum gesto inadvertido do artista e mais violento certamente manchará esta beleza. O inadvertido, o impulsivo, e o arriscado ganham muita energia em seus trabalhos. Do contrário, tenderiam para o extremo oposto, para uma beleza anacrônica e vintage. Tenderiam, igualmente, para um cinismo. Anacrônica porque não se espera que artistas hoje utilizem um repertório iconográfico de botânica, especialmente uma iconografia embebida em temas enciclopedistas e colonialistas (pensemos nas expedições científicas que se realizaram no Brasil desde o século XVII). Uma gráfica de poder, seria possível afirmar. Não me arriscaria a criar uma defesa das qualidades cínico-críticas do uso desta iconografia, pois parece-me que o artista ainda está buscando o terreno crítico no qual quer apoiar a resolução formal de sua produção. Deixar esta fenda aberta pode ser muito proveitoso. Se o discurso crítico tende à solidificar, diferenciar, impor limites ao assunto, parece-me, pois, um continente inadequado para uma obra de arte entrópica, sem forma, desajeitada.

 O artista propõe excursões com o objetivo de detectar as relações que a cidade (uma grande cidade como São Paulo) estabelece com a paisagem natural. Nesta “queda de braço” entre cidade e natureza, a cidade já ganhou, e já vem ganhando há muito tempo. Se a paisagem natural poderia despertar em nós uma emoção sublime - reverência, ameaça, terror, ou ainda, diluição em sua vastidão e potência ilimitadas - não parece ser esta a natureza apresentada pelo artista. A experiência do sublime, em seu trabalho, encontra um eco nostálgico, mas que o artista esforça-se em recompor ao armazenar num mesmo espaço amostras de plantas e de terra em seu estado natural, recolhidas em terrenos baldios, além de desenhos e estruturas que nos remetem à paisagens montanhosas. Do grande corpo sólido de terra e pedra que é uma montanha, o artista preserva somente um vestígio, uma pequena referência. O que me parece interessante é que, além de ser montanha, as estruturas são também cabanas, lugares rudimentares de proteção e abrigo, e temos uma contradição frutífera: por um lado, uma domesticação da representação da paisagem natural (movimento que a configuração da cidade realiza), e por outro, um retorno a uma condição primitiva, ao interior da caverna (novamente, entropia).

Demiurgo-Caballero. Se o demiurgo platônico reproduz a forma segundo modelos ideais, portanto impõe ordem onde a ordem não existe, Daniel Caballero parece encontrar um mundo em desmoronamento. O demiurgo torna-se uma espécie de arquivista, um ser exausto que tenta reter algo deste mundo com fita adesiva e outros materiais toscos e rápidos, antes que o mundo deixe de existir.

 

* Texto realizado por ocasião da curadoria da obra Land Art ou Onde podemos construir montanhas? de Daniel Caballero, na Estação São Bento do Metrô de São Paulo, como parte da 9ªSemana Metrô do Meio Ambiente - 2014.

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Ecomarginais

Ecomarginais por Juliana Monachesi, Maio de 2014

Até outro dia eu imaginava, do alto da minha leiga ignorância, que a botânica era a mais singela das ciências biológicas. Dedicar-se a estudar plantas, flores, fotossíntese... Só poderia ser uma área do conhecimento absolutamente meiga - afinal, o que poderia estar mais distante e alheio aos ciclos históricos da realidade social humana? Mas, graças ao trabalho que Daniel Caballero desenvolveu para o Festival da Cultura Inglesa, veja você, descobri que existe um ramo da botânica altamente politizado e socialmente engajado. E ainda fica melhor, do ponto de vista estético. A grande bandeira dos botânicos militantes são os marginalizados. Aqueles que espreitam dos terrenos baldios, que vingam quando permanecem invisíveis, que se fortalecem justamente ali onde o descuido do Estado e da sociedade civil os deixa parasitando, ignorados, o bem comum. Refiro-me, obviamente, a esses honrosos membros do reino vegetal denominados... plantas nativas.

Seja marginal, seja herói, já proclamava HO. Em homenagem às marginais plantas nativas de São Paulo, que só brotam sossegadamente nos terrenos baldios da cidade - onde ninguém vai arrancá-las confundindo os arcaicos matinhos que carregam no DNA toda a ancestralidade de nossa natureza selvagem com ervas daninhas -, saio em busca de alguma historiografia marginal de arte para investigar quem seriam os precursores da expedição botânica marginal de Caballero. Todos os indícios me levam ao artista conceitual americano Alan Sonfist, que em 1965 conseguiu convencer planejadores e burocratas urbanos a ceder um terreno ocioso em La Guardia Place, Manhattan, para instalar ali seu Time Landscape, um parque de plantas nativas de Nova York. Pulularam detratores dizendo que as plantas não iriam vingar em uma metrópole contemporânea, mas não só elas estão lá até hoje, como a listinha de espécimes pré-coloniais de Sonfist hoje consta integralmente da lista de plantas autorizadas para plantio na cidade de Nova York.

O que práticas artísticas tão diversas quanto as de Caballero e Sonfist têm em comum? Bem, algumas intenções coincidentes, pelo menos: propiciar um debate público sobre um assunto desconhecido e urgente; dar a ver, por contraste, um contexto privado amplamente ignorado; talvez, quem sabe, transformar alguma coisa no processo. Em 1965, o expediente de erigir um monumento público em forma de parque - na época da land art e da escultura social de Beuys - era uma boa estratégia artística. Quase 50 anos depois, um procedimento semelhante pareceria ingênuo, datado, ou até instrumentalizado pela má consciência científica, a se fiar em Hal Foster e seu alerta sobre a banalização da arte e da política pelas apropriações mútuas entre etnografia / antropologia / sociologia e arte. Então Daniel parte em expedições urbanas e volta com uma catalogação das maiores aberrações botânicas de que se tem notícia, praticadas por... nós, moradores da metrópole.

A viagem pitoresca do artista contemporâneo, descobrimos na presente exposição, já não diz respeito à exploração de mundos inconcebivelmente distantes e inacessíveis nem tampouco a uma enumeração de espécimes e de suas monótonas características, com vistas a uma suposta análise científica, apesar da carga ficcional e subjetiva de todo relato. Hoje, a viagem pitoresca é empreendida sabendo-se, desde o início, subjetiva e ficcional; transcorre num raio de atuação relativamente pequeno, mas nem por isso menos representativo; e resulta num retrato surpreendentemente revelador não mais sobre o "outro", sobre um dado objeto de pesquisa ou uma amostragem exótica que o explorador coleta e leva consigo de volta ao seu mundo, mas sobre este seu mundo justamente, sobre aquilo que chamamos de natureza ao nosso redor, sobre o "semelhante" com que nos deparamos o tempo todo em todo canto.

Nossa ideia de natureza precisa ser revista. Nossas ideias sobre arte e ecologia também. E nossas noções sobre arte política, mais ainda. Vejo aqui nessa Expedição Botânica entre Avenidas Paulistanas um dos trabalhos de arte mais politizados que vi recentemente. Sem ser panfletário, sem deixar de ser arte por um segundo sequer, é uma obra que logra nos engajar numa questão candente. Ao mesmo tempo em que nos põe a pensar em land art, performance, naturalismo, grafite, intervenção urbana, ready made, pintura, desenho, quadrinhos, cubo branco, display, dispositivos expositivos, narrativa, racionalismo, crise da razão, modernismo, pós-modernismo, multiculturalismo, guerras culturais, geografia, etnografia...

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Não gosto de paisagem

Ele disse: “Não gosto de paisagem. (Off we go.)” por Maria de Fátima Lambert,  2014

"Por natureza entendemos o nexo infindo das coisas, a ininterrupta parturição e aniquilação das formas, a unidade ondeante do acontecer, que se expressa na continuidade da existência espacial e temporal. (…) A nossa consciência, para além dos elementos, deve usufruir de uma totalidade nova, de algo uno, não ligado às suas significações particulares nem delas mecanicamente composto - só isso é a paisagem."

Georges Simmel – Filosofia da paisagem

 

“…repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma batalha…”

Machado de Assis – Dom Casmurro

 

 “A paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incómoda como leito.”

Bernardo Soares – Livro do Desassossego, vol. II, p. 37

 

 

PERSONAGENS:

Ele (sempre ausente da peça, é uma espécie de voz da consciência).

Eles – em uníssono discordante: Daniel e Pascal.

Homem da montanha – tem uma casa incrustada no coração pois a sua matéria é a madeira

Homem do concreto (termo brasileiro para o cimento de Portugal) – usa chapéu e bermudas e faz-se acompanhar de um bloco e lápis.

Eu – que estou por aí.

 

 

CENA ZERO:

Ele disse: “Não gosto de paisagem.” 

Eu digo: Off we go.

Eles (Daniel e Pascal) dizem: “vamos dentro da paisagem pois a caminhada, a viagem, a deriva e o mergulho estão lá dentro, submersos...”

Eu digo: “…avançando para uma saída luminosa?”

Eles dizem: “…hum talvez…”

Acto I

[ENTRA EM CENA O HOMEM DA MONTANHA]

 

Homem da montanha: “Há certa tendência em olhar as imagens – quer pictóricas, quer fotográficas – sondando o passado. Olhamo-las, não somente para um fruir estético que se proponha descontaminado, “suspendendo” outros pensamentos e razões…todavia, acaba-se quase sempre relacionando o reconhecimento (entre o) do visto com “algo”, coisificando a imagem, ao mesmo tempo que se concetualiza a imagem – no contexto de um imaginário privado ou societário. Assim, se processa esse crescendo, paralelo à nossa vida como pessoa; esse acumulo que é um arquivo iconográfico/iconológico – pois se trata de desvelar camadas sucessivas, de as decifrar…, contribuindo para o aperfeiçoamento de uma educação estética implícita. 

 

Eu: Então, quais são as razões da paisagem? Porque se convencionou, com tal veemência, que nos atinge, assim, a contemporaneidade? Posso citar o Bernardo Carvalho que escreveu em Mongólia:

“A paisagem na arte contemporânea é uma memória de estar no mundo.”1

 

Homem da montanha: …precisamos tanto, sempre, de encher essa pedra da memória. A paisagem serve muito bem para dar imagens a coisas que se perderam. É mais fácil reconhecer os episódios da vida, a terem acontecido em paisagens do mundo. 

 

“A paisagem oscila entre um imaginário empático do artista e a busca de uma realidade objectiva das plantas, dos animais, dos relevos, das cidades e de tudo o que constitui a paisagem.”2

 

Homem do concreto: Lá vens tu, com essa ideia do Amiel a dizer que a paisagem é um estado de alma…3

 

Eu: Prefiro a convição do nosso Bernardo Soares – que imaginou as suas paisagens de chuva, através da janela do seu escritório…será que as melhores paisagens são aquelas que vemos pela janela? Sem estarmos dentro das paisagens, da natureza? Bom, não me respondam…deixem-me acreditar que: “ Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma.” Como eu acredito nisso…que não acredito.

 

[ouve-se, sem se ver na paisagem, a voz dele]

 

Ele disse: “Não gosto de paisagem.” 

Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia no “a paisagem é um estado de alma” do Amiel, um dos bons momentos verbais de mais insuportável interiorice. Digo-o porque não creio.”4

Homem do concreto: Acredite-se ou não na paisagem, há dias em que: “… esta é a paisagem que me pertence, e em que entro como um figurante numa tragédia cómica.”5

 

Homem da montanha: tu possuis todas as paisagens que existem para tu veres. Certo, é conveniente que tu as vejas ou as queiras construir do nada? Como se todas as manhãs do mundo - do Pascal Quignard – estivessem sempre na linha – possível ou impossível - da porta de casa, ali prontinhas a serem empilhadas. Cada dia que haja, farias uma torre de paisagem diferente. Mas era sempre paisagem porque na palavra paisagem não se vê nada…ou… vê-se tudo.

 

Eu: Oh pois! … (rsrsrs) Vejam lá, será? Como se pode concluir algo…do alto dessas torres de marfim que tu constróis? Tudo está lá dentro. Esses teus momentos rápidos, impulsos de paisagens…paisagens encarnadas, a carne da paisagem…ando às voltas de Gilles Deleuze.

 

“O mais que há no mundo é paisagem, molduras que enquadram sensações nossas, encadernações do que pensamos.”6

[pausa para respirarem a ideia de paisagem que é uma encarnação]

 

 

 

Eu: Vamos avançando com as ideias para outras bandas de paisagem. Será que ainda existe mesmo paisagem nos argumentos dos filósofos e na prática dos artistas e poetas? Porque, décadas atrás, André Lhote (Traité du paysage, Floury, 1939) escreveu acerca da “decadência da paisagem composta”, mencionando Poussin e Claude Lorrain. Que fazer…

 

[percebe-se que provocaram uma interrupção e não a deixam falar]

 

Homem do concreto: …ideia da paisagem composta… talvez aconteça; por conta dessa massa de olhares que entram e enxergam dentro da alma, quando o viajante pára e compõe a sua imagem de síntese…

 “O viajante, no seu movimento incessante, vê tudo à distância. Silhuetas recortadas contra a paisagem. Imagens arquitecturais se destacando no horizonte. Pessoas e lugares que pretende encontrar depois da próxima curva. A viagem é produção de simulacros, de um mundo puramente espectral erguido à beira da estrada.” 7

 

Homem da montanha: eu diria talvez, e por minha conta e risco, relembrando esse pintor alemão que andou pela América do Sul… 

 

[sai de cena o homem do concreto]

 

Eu: …então, referes-te ao Rugendas?

 

Homem da montanha: não te apresses em falar… deixa-me falar do princípio. O Alexander von Humboldt entendeu o seu ofício como implicando a “apropriação” visual da natureza, pela via de um acúmulo de imagens que fosse via privilegiada, em termos de rigor para constituição de seu conhecimento minucioso. A imagem isolada não servia para a aderência de saber: carecia assegurar as imagens em formato conjunto, pela completude instituindo o quadro. 

 

Eu: vais mesmo dizer isso tudo…e para quê?

 

Homem da montanha (sem dignar-se dar réplica, continua…): Johan Moritz Rugendas8, à semelhança e motivado pelo geógrafo, percebeu que deveria proceder, de modo a captar “fisionomia” da paisagem. Assim, viajou pelo Brasil, entre 1822 e 1825. 

 

Eu: É. César Aira, em Um episódio na vida do pintor viajante (2000), narra exatamente as efabulações de Reguendas, no seu périplo pelas terras da América do Sul. Haja precisão, minha gente. Sejamos rigorosos…Vá-se lá saber quem nos ouça!

 

[Entra em cena o homem do concreto]

Homem do concreto: Perdão, regressei. Entro nessa conversa. Tem aquele outro…chamado de Sandro Lanari que é o protagonista da ficção de Luiz Antonio de Assis Brasil, O pintor de retratos (2001). O escritor narra a história de um fotógrafo que progressivamente se converte em pintor.

 

Homem da montanha: 

“…todo artista deveria representar a natureza livre da necessidade de pré-julgamento, das representações antecipadas, visto que a natureza não sofresse a deformação do olhar preconcebido, em outras palavras, uma natureza virginal.” 9

 

Eu: Sem querer parecer doutrinal mas…não pode ignorar que as tradições pictóricas e artesanais já estabelecidas, foram largamente reforçadas pela nova ciência experimental e pela tecnologia. Ajudou à confirmação da importância dasdas imagens, nesse périplo, nesse caminho para o que seria um novo e inelutável conhecimento do mundo.10

 

[pausa, olham-se os 3 em cena]

 

Eu: Não dizem nada? Então, continuo…No séc. XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira empreendeu jornada pela Amazónia, da qual empreendeu relato pormenorizado - «Viagem Philosophica» (1783-1792) que, até hoje, enreda qualquer leitor e espetador.  

 

Homem da montanha: Nos tempos do antigo mundo, do mundo novo ou deste que estamos…o homem partilhou sempre essa sedução da errância, da deriva…quer na natureza, quer na cidade…Já Herman Hesse dizia:

“El caminante es, en muchos aspectos un hombre primitivo, del mismo modo que el nómada es más primitivo que el campesino. (…)

 

Homem do concreto: oh! …por certo! Mas ele diz mais, ainda:

“Porque soy nómada, no campesino. Soy amante de la infidelidad, del cambio, de la fantasía. 11

E, meus queridos amigos desta conversa, se não se importam, vou tomar um cafezinho. Já volto.

 

[Aliás, saem todos de cena, tornam-nos cegos do que se passa]

 

Eu: Concordo com Herman Hesse quando, em Wanderer, assinala que “vencer o sedentarismo e depreciar as fronteiras converte as pessoas da minha classe em postes indicadores de futuro.”12 

 

Homem da montanha: … porque retomas o que eu disse? Hum…enfim. Entendo. Gostas de dizer o dito…para que não se perca.

 

[gera-se a expetativa da pausa]

Eu: No Ocidente, a paisagem é breve. 

 

Homem do concreto: “Continuo desenhando rápido enquanto a paisagem desaparece.” 

 

 

 

Acto IV

 

[estão todos em cena e vislumbra-se uma janela ao fundo com vista sobre uma rua]

    Eu: (…o que leio…)

“A paisagem em volta esvaziada de sentido, reflectindo-se nos meus olhos, brotava dentro de mim…” 13

 

Eles: Isso significa… Trazer a paisagem para dentro: foi olhada [essa vista] através de fotografias. Paisagem que entra dentro de casa: o exterior converte-se em interior, instalando-se, residindo, ainda que provisoriamente, “dentro”.

 

Homem do concreto: estamos a falar do processo de elaboração dos desenhos. O tema iconográfico corresponde à vista pela janela grande da Galeria… e foi por mediação.

Eu não estava ainda aqui. Tu (dirigindo-se a Eu) enviaste-me as imagens daqui. Olhaste pela janela e eu, o artista (apesar de homem do concreto) desenhei essas tomadas de vista, atribuindo-lhes uma nova identificação e caraterísticas.

 

Eu: tu não és homem concreto (do concretismo…) mas do concreto…

 

Homem do concreto: Falando sério. A metodologia de trabalho: para a produção dos desenhos, vi as fotografias do lugar: ou seja, a vista direccionada (entre as muitas possíveis), dirigindo-se para a rua. 

 

Eu: Pois. O lugar, a vista eram-te desconhecidos, ou seja, não tinhas a vivência direta. O local, portanto, era-te “estrangeiro” (anónimo) e fixaste-o em registo.

 

[parou]

 

Homem do concreto: …apropriando-se de forma intermediada – pois o ângulo de tomada de vista não foi decidido por ele. Era isso que ias falar a seguir?

Homem da montanha: Pense-se quanto uma vista de um lugar específico – “conhecido” e/ou “nominado” – configurado na imagem fotográfica se transporta para algo “mastigado” e decidido […ainda que des-conduzido… (murmurei, entre dentes)] pelo olhar do artista.

 

[ouve-se uma voz off]

 

Voz off: Como uma paisagem real, um excerto de natureza vocacionada pela determinação de alguém, passa a usufruir a condição de paisagem imaginada, mas não imaginária. Tratar-se-á de atos sobreposicionais. O desenho concretizado em papel e depois o desejo de alastrar pela parede lateral da galeria: eivado de um sentido de desprendimento, despojamento…deixar ficar, prescindir. E, de modo imperceptível, futuramente, ser mais uma camada do palimpsesto.

 

[de tão inesperada se ouviu a voz que os presentes entenderam retirar-se. pausa de café e fatia de bolo de chocolate – caso houvesse…]

 

Acto V

Eu: Regressamos. Lembrei-me daquele diálogo do Mondrian…entre o pintor naturalista e o pintor abstrato…(rsrsrs) estamos a imitá-lo…Mas seja.

 

Homem da montanha: Construí.

 

Eu: Tu acreditavas. 

 

Homem da montanha: Cada pedaço de madeira e eu acreditava. Cada desenho da paisagem inventada e eu acreditava.

 

Homem do concreto: E eu, também. Cada caminhada na cidade, por entre aquilo que hoje está e amanhã, não mais se vê. Acredito na paisagem, talvez. Na sua condição de não ser dominada; mas tampouco que se deixe dominar, isso não. 

 

Homem da montanha: Por isso, vês a minha casa no lugar do coração. A cidade ou lá o que seja isso, está dentro. Construi a realidade da paisagem dentro de mim. Fora vêem a carne da paisagem. Assim, viajo.

 

Homem do concreto: Vês a espessura dos meus desenhos das paisagens? É a pele que engrossa nas paredes porque os dias se seguem e pousam em cima das árvores e das pedras. Quase chegava dentro das paredes, como se fosse um mar de pedra.

 

Homem da montanha: eu quase chegava à ilha, talvez o Gilreu na beira da praia, em frente a linha do horizonte - que o Alexandre Rodrigues Ferreira14 atravessou…

 

Eu: ele viajou pela Amazónia, numa expedição filosófica. Era o séc. XVIII. Na Universidade que, em 1772, teve uma reforma, considerava-se que a Filosofia Natural carecia, não somente de fundamentação teórica, mas crítica. Assim, os naturalistas empreenderam esse programa de expedições, como hoje se designaria. E de lá trouxe imagens e coisas. Também ele foi um riscador. Assim os denominavam, aqueles que desenhavam o que fosse enxergado, visto.

 

“Julgamos que nos libertamos dos lugares que deixamos para

trás de nós. Mas o tempo não é o espaço e é passado que está

diante de nós.” 15

 

[saem de cena todos, sem justificarem ausência. não se sabe se regressam]



* Texto realizado por ocasião da curadoria da exposição, "Ele disse: “Não gosto de paisagem. (Off we go.)" com Daniel Caballero e Pascal Ferreira, na Quase Galeria , Porto, Portugal - 2015.

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Projetando para o colapso

Projetando para o colapso, projetando para a ausência por Mario Gioia,  2014

Nas cercanias da tranquila vila onde mora, Daniel Caballero, diariamente, tem visões do pós-apocalipse. Uma paisagem que se desenhava com sobrados geminados, quintais de paisagismos de gosto duvidoso, ambientes domésticos com fartos sons e odores, tudo isso cai, sem volta, vira pó. Os escombros cinza-avermelhados, espécie de amálgama do concreto e dos tijolos que anteriormente erigiam construções unifamiliares, dominam o território. Quarteirões dos bairros contíguos da Vila Madalena, Vila Anglo, Pompeia e Vila Beatriz deixam hoje transparecer rastros de paredes de cozinhas e lavanderias marcadas por ladrilhos brancos, diminutos pés de árvores que não tiveram tempo para prosperar, pedras de ardósia atualmente só em fragmentos irregulares, às quais outrora tinham função de ornar fachadas ou fazer parte de pisos de entrada. Uma atmosfera que mistura no mesmo plano Walking Dead, Mad Max e São Paulo S/A.

O artista paulistano se apropria, então, da árida paisagem para traçar caminhos de risco, com alta carga poética. Partilhando das andanças subversivas de nomes-chave da contemporaneidade, como Francis Alÿs, Caballero cria obras de difícil rotulagem, como o projeto que realizou especialmente para o Paço das Artes, Viagem Pitoresca Através do Espaço ao Redor da Minha Casa (2012). A instalação tinha pedaços de grama compactada em disposição elevada, estruturas que lembram andaimes com adesivações beges muito banais, desenhos (numerosos) realizados com o virtuosismo de um artista viajante, só que agora a catalogar e registrar tocos de árvores, troncos pintados de branco para resistir a pragas, ervas daninhas, mato. Como desdobramento do trabalho tridimensional, o artista exibe agora no corredor da galeria Central a série Lotes (2013), que funciona como uma panorâmica de desenhos marcados pela cor da terra e por uma quase abstração dos volumes e das formas do... mato. Melhor dizendo, do cerrado.

Vegetação com importância sempre colocada em xeque _ a constituição rasteira, irregular e pouco vistosa ajuda em tal depreciação, ao contrário da densidade verdejante da Mata Atlântica, por exemplo _, o cerrado, de um modo quase milagroso, ainda resiste em pontos muito específicos da Grande São Paulo. Em Franco da Rocha, nas bordas do antigo complexo psiquiátrico do Juquery, ainda florescem espécies como a lantana, o tarumã, a orelha-de-onça. No que deve ser a praça dos Museus, na Cidade Universitária, um pedaço original dos antigos Campos de Piratininga foi salvo à beira da sua completa desaparição. Aos fundos de um estacionamento de hipermercado no Butantã, nacos desse ‘matagal’ tão rico para a fauna local sobrevivem, cercados por metros de arame e grades. E Caballero ainda mapeia e percorre outras porções desses biomas tão particulares.

“Se as práticas errantes são hoje importantes a ponto de fornecer à arte um modelo de composição, isso ocorre em resposta à evolução das relações entre o indivíduo e a coletividade na cidade contemporânea”1, explica o teórico francês Nicolas Bourriaud. Assim, a obra-percurso de Caballero é indissociável do que caracteriza essa nova urbe, de relações conflituosas entre o público e o privado e marcada por regiões de difícil conceituação _ não lugares, zonas-fantasma, guetos, locais sitiados. A eleição do cerrado é exemplar na singularidade da poética do artista paulistano. A partir de experiências de grande fisicalidade nesses sistemas raros _ Caballero adentra por vezes clandestinamente tais lócus, com habilidade, mas sem a truculência de um antigo bandeirante, e, sim, com a atitude de um artista; nesse sentido, Smithson é um farol, quando tragado pelo pântano no crucial filme Swamp (1969) _, ele renova os procedimentos de expoentes da land art, da earth art e da environmental art. Certamente o descontrole de tais vivências ativa processos que, em âmbito visual, podem gerar peças intrigantes _ no caso, os desenhos feitos com acrílica e terra da série Lotes.

Desenho Rápido Enquanto a Paisagem Desaparece, título da individual, também ecoa capítulos da história da arte do Brasil, em especial o dos desenhos e das gravuras de Evandro Carlos Jardim. Em projetos como Balada da Cidade de São Paulo (1991) e A Noite, No Quarto de Cima, O Cruzeiro do Sul,... (1973-2010), Jardim reúne fragmentos, rascunhos, esboços e figuras incompletas que hoje ganhariam uma denominação de obra processual, sketchbook de artista etc. Estruturas de alta tensão, cavalos em queda, chaminés, barracos de madeira, visadas do pico do Jaraguá, isso tudo resultou em um conjunto de trabalhos de pujante força criado a partir do prosaico, do entorno, do trajeto. Agora, Caballero também repete a melancolia de Jardim, mas de uma maneira mais ruidosa, quase a nos espetar, incomodar. Gordon Matta-Clark (1943-1978) também ecoa, por meio de desenhos (parte menosprezada da sua produção), como Energy Tree (1970), e filmes e fotografias do underground da capital francesa, como Sous-Sols de Paris: Bones and Bottles (1977). “Completude por meio da remoção/ Completude por meio do colapso/ Completude no vazio”, escreveu o artista norte-americano, cuja aproximação com a poética rugosa, móvel, barulhenta e cromaticamente pouco expressiva de Daniel Caballero não pode ser omitida.

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Forquilha para terrenos baldios

Forquilha para terrenos baldios por Marcio Harum,  2012

Por entre os infinitos do mundo que é São Paulo, acumulam-se sequências e inconsequência de visões em relação a um pequeno microcosmo vivido, percorrido e reconhecido com intenções de aventura e pesquisa botânica em Viagem Pitoresca através do espaço ao redor da minha casa, projeto de Daniel Caballero para a Temporada de Projetos do Paço das Artes 2012.

Em seus field trips habituais de fotografia/ desenho de observação e classificação, o artista explora os arrabaldes de sua vizinhança, buscando aperfeiçoar um enquadramento paisagístico urbano através de técnicas de caráter seco, sem expressividade aparente, mas circunscrito a um forte senso perceptivo de ambientes. Esse trabalho é primeiramente apresentado aqui como um conjunto originariamente agrupado pela utilização combinada de canetas Bic, canetinhas e nanquim.

A presença de sentido, em sua mais recente produção artística, tenta descrever e catalogar as amostras deslocadas da flora in situ pela cidade afora, ao querer fazer aproximá-lo talvez do ofício de um mateiro ancestral de Rugendas, mas sem o facão para abrir picadas na mata. Em seu estudo, Caballero incorpora e reproduz múltiplas imagens de folhagens revoltas, arbustos rasteiros e relva daninha com a perfeição e a limpeza do traço de quem realmente tem iniciado suas práticas em meio ao universo sistematicamente profissionalizado da ilustração.

A estrutura de fundo para esta coleção de desenhos conta com inúmeras ocorrências comuns das cidades em qualquer dimensão; são evidências de territórios que desaparecem e se renovam em constante devoração semi-arqueológica, delineadas a partir do imaginário individual ou do esquecimento que afeta a vida coletiva. A instalação de Caballero exerce um poder de indução e nos indaga: o que soa atraentemente mais natural? A falta de espaços públicos, o cimento, a especulação imobiliária ou a árvore? O poste, a grama (campo construído) ou o urbanismo sem planejamento? Um terreno baldio abandonado e invisível ou o regulador mercado financeiro?

Há uma aproximação espontânea deste trabalho com o conhecimento de alguns procedimentos técnicos de jardinagem e o cuidado com as plantas. De outro lado nos faz rememorar os registros notáveis dos históricos naturalistas que irromperam nos interiores do Brasil, tal qual Florence, Langsdorff, Spix e Martius, e mais. A instância posta nessa mostra é a da abertura de um debate de assuntos que não estão contidos na ilustração ou na academia de estudos botânicos ou científicos.

Uma dada constatação das provas bastante interessantes que a sua investigação confirma na região de “Campos de Piratininga”(São Paulo); é que sendo o cerrado uma vegetação pouco exuberante, de capim alto e arbustos espinhentos, aos olhos leigos essas características realistas de descrição formam o que deve parecer ser um terreno baldio. Em um dos pedaços de chão de terra fragmentado atrás de um hipermercado pericêntrico, Caballero descobre ao invadir o cercado das empreiteiras da construção civil um “terrenico” de vegetação única, onde habitam espécies endêmicas na cidade em que mapeia. Essas mesmas áreas, que parecem ser apenas demarcadas para a possível transformação do capim em arbusto, do arbusto em árvore, da árvore em bosques, faz com que os enxerguemos como terrenos desocupados e não como remanescentes de ecosistemas anteriores. Vivemos o tempo do conceito dos valores invertidos.

Recordar que uma árvore ou os gramados da cidade não tem nada a ver necessariamente com a natureza, pode gerar conflitos com algumas das noções e raciocínios por parte dos militantes do ambientalismo. É inegável a dificuldade de assimilação do assunto por aqueles que compreendem mal os conceitos frágeis sobre tal ordem de mapeamento artístico e urbano. Se o bioma do cerrado, que se encontra na USP por exemplo, passou tanto tempo despercebido, é simples de imaginar a recepção de aspectos similares por dirigentes no poder privado e público que são absolutamente leigos ou contrários quanto aos temas de conservação do patrimônio público geográfico, histórico e cultural. O trabalho de Caballero nos dá acesso a área mais verdadeiramente natural dentro de uma cidade qualquer, com direito a uma viagem no tempo a pessoal cidade interna, ao vermos que as suas redescobertas prezam paisagens e espécies extintas. Com certeza faz uma grande falta nessa mostra o Guia de Terrenos Baldios da Cidade de São Paulo, da artista espanhola Lara Almárcegui, que realizou tal pesquisa e trabalho artístico durante os meses de sua residência artística durante os preparativos da 27a Bienal de São Paulo, em 2006.

Viagem Pitoresca através do espaço ao redor da minha casa, nos deixa à sombra do dilema e metáfora de subexistir em meio a tanta falta de rés do chão: nos resta enfiar uma caixa de concreto na cabeça como forma de prosseguir a vida sem interrupções (alusão a peça diorama de Daniel Caballero, feita de papelão e exibida na vitrine do MASP a convite de Regina Silveira na estação de metrô Trianon-MASP no 1o trimestre de 2012) ou então simplesmente montar em um tapete de grama voadora rumo ao reencontro com a natureza perdida.

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Do cerrado dos Campo de Piratinga

Do cerrado dos Campos de Piratininga  Marcio Harum entrevista Daniel Caballero,  2012

MH: A tua formação é resultado direto do teu trabalho com a ilustração, Daniel. Como você explica essa passagem da ilustração ao campo da produção artística na tua trajetória?

DC: Minha formação é decorrente de vários interesses, alguns mais difíceis de associar à minha produção, como, por exemplo, jardinagem. Sempre tive interesse em jardins, e aprendi a desenhar a partir de estudos com plantas.

Muito jovem, conheci o trabalho de alguns dos naturalistas famosos: Rugendas, Frans Post, Debret, Albert Eckhout; estudei muitíssimo as aquarelas da Margareth Mee, por exemplo. Posteriormente, fui trabalhar com ilustração e design, e o que me interessa nesse campo é o registro da memória visual. Pode-se entender bastante do contexto de uma época, apenas observando os seus desenhos e objetos, e isso alimenta meu repertório de possibilidades como artista.

Especificamente neste trabalho para o Paço das Artes, me apropriei do conceito naturalista, para trabalhar com o projeto de uma instalação que conta com desenhos que partem dessa carga de informação, ao debater assuntos que não estão contidos na ilustração botânica, ou científica.

 

MH: À partir de percursos urbanos, para o teu trabalho no Paço das Artes, surgem desenhos e mais desenhos sob o teu olhar bem particular, e formam um conjunto de vistas absolutamente irreconhecíveis e corriqueiras da cidade. Como se dão essas andanças?

DC: Procuro exotismo no cotidiano. Tento usar estratégias para sair do que é familiar. Mudo meus horários em relação aos de costume para observar a cidade, sem participar. Saio, vou até algum ponto da cidade e fico parado como se estivesse numa pescaria, esperando 'fisgar" algo fora da ordem. Minhas rotas habituais, ocupam uma área reduzida da cidade, e me desloco para locais que não conheço tentando me perder. Essas tentativas de aventura, de deriva e de buscar novidades, apesar de divertidas, se demonstram não essenciais.

No fim, todos os espaços da cidade, do centro até a periferia, são igualmente recortados e destinados a alguma finalidade pelo trajeto.

Dentro desses espaços, existem elementos ou situações sobrepostas ao acaso, coladas na paisagem. São presenças invisíveis e atuantes na rotina diária da populacão local. Então por fim, acabo explorando o meu entorno, e uso meu olhar para aproveitar o que se apresenta à minha frente.

 

MH: Esmiúce por favor o teu processo de olhar o entorno, o da edição de pontos da cidade que vão merecer a captura de imagens e o natural desdobramento com a realização dos desenhos.

DC: Meu trabalho surge do interesse em entender como ocupamos os espaços da cidade. O momento no qual, por exemplo, determinamos como queremos as paredes das nossas casas ou como percebemos como as ruas se transformam, se desenvolvem.

Comecei o processo de observação para esta pesquisa, aonde descobri diferentes hierarquias entre os elementos da paisagem. Como aparentemente nada é construído sem motivo, estão presentes em meu trabalho esses mesmos elementos, que são construídos com um propósito claro na sua função e importância para a vida coletiva.

Mas existem outros elementos que são subprodutos da movimentação da cidade por força da flutuação financeira do mercado imobiliário, ou resultantes de sobreposições de idéias antagônicas. Muitos desses elementos acabam por se perder, não tornam-se uma coisa nem outra, formam uma nova espécie, ou categoria de objeto disfuncional.

No desenvolvimento do ambiente artificial, as áreas de vegetação em geral são tratadas como elementos secundários da paisagem, talvez por que de certo modo a cidade não precise mais dessas áreas para desenvolver-se.

Como as pessoas que vivem nas cidades precisam dessas áreas, a natureza há de ser construída. Utilizo os desenhos para registrar objetos e esculturas que sintetizam sequências de acontecimentos, e com isso investigo a diferença entre o que é natural (algo independente da intervenção humana) e o que é a natureza construída ou seja, o que passa a existir para atender as nossas necessidades urbanas.

 

MH: No teu trabalho há uma perspectiva histórica relutante no traço observatório do desenho de natureza (Debret, Rugendas, e mais), que começa a surgir discretamente. Como você define este acontecimento em função da tua produção artística recente depois de longa experiência com a ilustração?

DC: Veja, os desenhos surgiram como uma pratica autêntica de entendimento do espaço urbano. Sem trocadilhos, mas foi um processo "natural" e não um acontecimento, sempre uso desenho no meu processo de criação. Procurei fazer o mesmo que os viajantes naturalistas, mas em um ambiente artificial e sem as constantes e longas viagens.

O ato contém propositadamente ironia e subversão, desrespeito em perspectiva o colonialista arrogante e seu olhar europeu, que se valia de artistas para sua metodologia de domínio na coleta sistemática de informações. Hoje, sabemos pelo distanciamento histórico como aquele olhar era pouco científico e sim mercantilista, seguramente.

Portanto, trata-se de um método com verniz de propriedade, mas comprovadamente falho e que o utilizo para mostrar coisas e atos falhos. Os meus desenhos respeitam os procedimentos do naturalismo, mas emprestam uma memória visual de época hibridizada, que denuncia tratar-se de desenhos atuais.

 

MH: A que propósitos servem o teu trabalho para a edição e agrupamento de imagens e desenhos? Como você chegou a necessidade de ter uma instalação e não simplesmente uma série de desenhos como projeto de exposição para a Temporada do Paço? Não te parece que pode estar aí incluído algum efeito colateral da cultura de editais? No que realmente se baseia este teu projeto instalativo?

DC: Acho que já respondi essas indagações e não quero ser redundante. Digo que sou um artista que pensa prioritariamente a instalação, muitas vezes em site-specific. De fato os desenhos podem ser autonômos, mas já os havia experimentado assim e tinha outras idéias em mente.

Se pensarmos talvez o conjunto como um gabinete de curiosidades, onde as esculturas, as amostras e os desenhos façam parte de um mesmo tema único de estudo, se consegue visualizar mais facilmente a proposição. Sinceramente, não entendo muito de editais, apesar de já ter me inscrito em alguns, só levei a sério mesmo este do Paço, e foi de tanto alguns amigos artistas insistirem comigo de sua importância. Achava a tarefa chata, ter que preencher formulários e documentos, mas estou começando a pensar que é uma boa opção de ganhar visibilidade, sei lá…estou tomando gosto.

 

MH: Aonde você assume que está a imaginação de Viagem Pitoresca através do espaço ao redor da minha casa, título do teu projeto para a Temporada do Paço das Artes em 2012?
DC: Realizar o trabalho tendo como o ponto de partida a vivência dos procedimentos dos artistas naturalistas de séculos atrás na atualidade da experiência da complexa malha das dificuldadades ubanísticas da São Paulo dos dias de hoje, já contém uma boa dose de imaginação por si só. É quase como brincar de Tim Tim, e o resto é apenas consequência.

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O pioresco moraao lado

O pitoresco mora ao lado  por Raphael Fonseca,  2012

No Paço das Artes, em São Paulo, estão abertas as exposições relativas à 2ª e 3ª Temporada de Projetos. Seis artistas com diferentes pesquisas visuais apresentam seus trabalhos. Após se passar pelas pinturas de Paulo Almeida ou pelas colagens com cédulas de Rodrigo Torres, há o encontro com outra série de imagens expostas sobre a parede.

Prendedores sustentam folhas de papel de diversos tamanhos que sutilmente se sobrepõe e sugerem a forma de um irregular mosaico. À primeira vista são “desenhos detalhados da natureza”. Com um olhar atento, fica claro que nenhuma imagem é dada de modo direto. Uma árvore surge ao centro do papel, numa configuração semelhante à ilustração científica. Seu protagonismo, porém, é parcial; um poste, um filho da “natureza hominídea”, é envolvido por seus galhos. Há o atravessamento de elementos discrepantes: a árvore que se alastra de modo horizontal e pictórico através de suas folhas e a coluna elétrica que intervém linearmente com seus cabos que escapam das margens. Ambas as bases destas diferentes colunas metropolitanas estão pintadas de branco; o que leva o homem a tentar aproximar visualmente árvore e poste? De que adianta homogeneizar seus “pés” se será necessário rasgar parte da árvore para que a eletricidade se propague?

Um agrupamento de objetos no espaço expositivo amplia a tensão encontrada nestes desenhos. Uma estrutura assimétrica construída com pedaços de madeira e fita adesiva se transforma em um altar para fragmentos de florestas – não há espaço para árvores, mas para maquetes da paisagem, pequenos vasos de plantas. Canos se interceptam e criam um ruído na apreensão desta estufa fictícia: a linha que ditava ambiências sobre o papel, ganha um caráter expressivo no espaço e impossibilita o domínio por parte do público. Há aqui a lembrança visual de Franz Weissmann somada à consciência de que os ventos contemporâneos são outros. Como dar conta das múltiplas direções desta instalação em um olhar ou fotografia?

“Viagem pitoresca através do espaço ao redor da minha casa” é o título deste trabalho de Daniel Caballero. Não se pode mais falar num “Brasil”, tal qual Rugendas o fez em seu álbum de imagens, em 1835, assim como não é possível dar conta da diversidade paisagística de São Paulo. Por outro lado, é possível compartilhar a apreensão daquilo que está ao redor de nosso ninho e codifica-lo em visualidade. Transformar suas gambiarras em arte é iluminar não só as precariedades de outras cidades pelo globo, mas nos fazer refletir sobre o frágil e provisório entre e dentro de nós mesmos. O pitoresco mora ao lado.

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Change

Sobre Change, in Latin America and the Caribbean  por Váleria González,  2011

"Daniel Caballero pertence a uma nova geração de artistas brasileiros que, sozinhos ou coletivamente, buscam, com seus trabalhos, abrir espaços alternativos fora de museus e galerias de arte, não como forma de critica ao sistema de arte atual – como geralmente fizeram os avant-gardes- mas realmente buscando ou criando espaços não institucionais onde outras formas de engajamento com os visualizadores podem ser possíveis.

Esse é o caso com Arcádia, uma intervenção que foi parte de uma apropriação coletiva de uma casa antiga. Daniel Caballero escolheu o banheiro e, sem tentar concebê-lo como sua estrutura funcional, transformou-o em um espaço mágico. Ele cobriu cada superfície do banheiro com grama plantada, textos e sua típica pintura mural feita por linhas que se parecem com estranhos canos de água ou serpentes, escalando livremente as paredes, como se estivessem completamente indiferentes à lógica racional da arquitetura.

Para Caballero, os limites do espaço arquitetônico representam a ordem social, que geralmente tem um papel repressor das forças criativas do indivíduo. O que ele faz não é feito para decorar esses limites, ou até mesmo, negá-los, mas engajá-los com o espaço que eles definem em um novo tipo de diálogo."

Texto do catálogo da exposição "About Change" In Latin America and the Caribbean,  realizada em 2011 em Washington D.C.  pelo Banco Mundial. 
A exposição apresenta um recorte da nova arte Latino Americana.

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Ateliê Fidalga

Ateliê Fidalga no Paço das Artes  por Mário Gioia,  2010

"No corredor atrás de Mariz, Daniel Caballero, junto de uma das colunas de sustentação do edifício, erige um misto de instalação e escultura, Mais Pesado Que o Céu, que atua como um desdobramento da sua participação bem-sucedida na coletiva Aluga-Se. Lá, em um imenso banheiro da casa, forrado por ladrilhos azuis-claro, Caballero criou um universo bastante próprio, mescla de grafite corporificado, earth art, arte povera do Terceiro Mundo, intitulado Não Pise na Grama. Anteriormente usado para a higiene pessoal, o banheiro foi completamente transmutado em um ambiente vivo, onde plantas e ervas daninhas cresceram, desenhos foram espalhados por paredes, objetos e piso (este agora preenchido por quilos e quilos de terra). No Paço das Artes, Caballero continua a abordar a impermanência, a instabilidade, principal característica de sua obra, e criou uma estrutura baseada no precário – caixas de papelão, madeira de andaimes, pedaços de móveis descartados, entre outros materiais - , uma espécie de utopia construtiva fracassada. A estrutura descoordenada almeja ultrapassar o teto, mas não consegue e tem um conflito com a arquitetura de tom modernista algo datada do espaço, com muito concreto, vidro e encanamentos à mostra. Para quem usava a própria casa como centro de suas obras e, depois, criou intervenções como Boas Maneiras: Geófagos Educados Não Acreditam em Linhas Imaginárias, na Casa do Olhar, em Santo André, Caballero lida agora mais habilmente com as limitações dos espaços expositivos, mas sem deixar para trás o vigor, a ironia e a extroversão."

Trecho da publicação sobre a coletiva, "Ateliê Fidalga no Paço das Artes",

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Sobre Não pise na gram ou Árcadia

Sobre Não pise na grama ou Árcadia  por José Bento Ferreira,  2010

Desenho e arquitetura interagem, mas, inversamente, a livre improvisação do desenho resulta na linha espessa e contínua que percorre o sinuoso e azul espaço do banheiro sem violá-lo, mas cortejando-o. Talvez o valor intrínseco da forma livre não passe de uma ilusão metafísica e o desenho possa admirar a solidez das coisas e suas finalidades mundanas. Não é à toa que estamos no banheiro, local de necessidades físicas, nudez e também asseio, vaidade, purificação.

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O espaço é o território onde o ser se concretiza  por Douglas de Souza Leão,  2009

 

Enquanto indivíduos, erguemos muros e os decoramos ao nosso bel-prazer. Já como sociedade, estamos sujeitos à coerção dos muros alheios.

A ordenação social muitas vezes reprime a potência do indivíduo.

Daniel Caballero expressa através das linhas e das formas a eterna luta do sujeito contra o espaço normativo.

O mesmo espaço que nos permite tecer a vontade, é, por outro lado, o elemento que nos castra, pois agrega o peso sufocante do todo. O indivíduo passivo se cala em seu próprio desespero, e vive uma existência cheia de palavras não ditas.

Geófagos é a expressão do sujeito ativo devorando os limites arbitrários e construindo a sua própria história.


Texto da exposição Boas maneiras: Geofágos educados não acreditam em linhas imaginárias na Casa do Olhar em St André

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O espaço é o ser

Pós- Conceitual  por Saulo di Tarso,  2008

Nunca me esqueço do silêncio plasmar causado pelas afirmações feitas por Robert Kudielka, no Centro Universitário Maria Antônia, quando discorreu sobre a arte contemporânea internacional. Ao finalizar sua fala, ele dizia algo no sentido de que tínhamos que descer do vagão simbolizado por Duchamp, Beuys e Kabakov e inventar outra coisa, porque até então éramos ramificação imitativa daquilo que os três decanos trouxeram à realidade da Arte.

A platéia era composta, na sua maioria, por artistas e críticos descendentes ou afirmativos dos três. Na medida em que Kudielka falava, brotava-nos o conjunto de linguagens consagradas por ao menos duas gerações (80 e 90) representadas ali. Nunca mais ouvi ninguém falar a respeito. Mas, de fato, aquele dia foi um divisor de águas, no mínimo, porque delimitou muito bem que havia a necessidade do “fim” de três pregnâncias na arte tida como global: conceitualismo, neoformalismo e a das problemáticas ecológico-visuais proativas existentes na arte de Kabakov.

Daniel Caballero é uma espécie de autófago das artes visuais: quando você menos espera, surge uma harmonia refinada de dentro do caos e do previsível somados na sua linguagem. Harmonia que ele cria ao unir caligrafia à simbologia que traz de uma universalidade da ilustração, universo no qual se insere como criador original. A figura humana que forma edifícios transcende o óbvio e reafirma que do urbano nascem múltiplas realidades. A imagem nasce da palavra.

Sua ação visual resulta de um uso não pré-determinista das técnicas gráficas, digitais e espaciais. Esqueletos e barracos, vida e morte, poesia e cacografias. Você vê um muro na sua pintura? Eis o inverso do graffiti. Engana-se quem pensa que Caballero é uma espécie de neo-antropófago, pois do mesmo modo como a Antropofagia inaugurou a interação nas artes, a interação está transformando a Antropofagia em algo esmaecido no tempo. No que isso vai dar? Honestamente, não sei. Mas este “fim do mundo” que nos conta Caballero o alinha com Daniel Melim, Marcos Garutti, Nunca, Mangue beat, Funk carioca, Re:combo, Cordel do fogo encantado... Isso é Pop? Não, é outra coisa. É algo que veio das ruas onde Nina atuou como atriz e das sertanidades urbanas espalhadas por aí.

Cidades feitas de gente multicultural e multiconflitiva. Uma quarta via, talvez, coletivos pós-tudo feitos por artistas que não precisam descer do vagão, pois jamais estiveram nele.

Segundo o que se vê em “o começo 0.2”, Caballero está fazendo a beleza clássica contemporânea arder no fogo do inferno: aqui, outra iconoclastia: aquela que põe fim à lógica das instituições que pairam sobre todos como uma entidade de absorção, passagem e emissão de um conhecimento visual obrigatório. É uma situação visual livre, que do nanquim ao Macintosh, e daí para as ruas apreendidas pelo seu olhar, vai somando ao graffiti, webart e às mídias, musicais, impressas, sem incorrer a sua postura como figura única das artes visuais estigmatizadas por um circuito. Ao contrário, ele faz parte de um enredo coletivo, legado da geração contemporânea, sem limite de idade ou delimitação de escolas: fim. E viverão felizes para sempre: caos e Kudielka.

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Pós-Conceitual
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