Viagem Pitoresca átraves do espaço, ao redor da minha casa, #02 - Land Art ou Onde podemos construir montanhas? 2014
Instalações site-specific em série, concebidas como gabinetes de curiosidades a partir das minhas andanças cotidianas.

No metrô, o que se vê pela janela é um nada — uma ausência de paisagem, sem qualquer referência reconhecível, sem luz natural, sem marcas do tempo ou indícios do clima da superfície.
Na estação São Bento, um enorme volume de pessoas atravessa a cidade diariamente, vindo de diversas regiões. Nesse esvaziamento do tempo gasto nos percursos, são elas próprias, sem perceber, a possibilidade mais concreta de uma paisagem viva.
Exposta na vitrine ao lado da catraca, a instalação Land Art ou Onde Podemos Construir Montanhas?, desenvolvida ao longo de quatro meses, apresentava um processo contínuo diante dos olhos de todos que passavam por ali. Um ateliê-acampamento em que, caminhando pelo “campo” e arredores, pude registrar paisagens naturais ainda intactas, vegetações curiosas e montanhas exuberantes. Tratava-se dos Campos de Piratininga — lugar de origem da cidade de São Paulo — hoje tomado por uma intensa urbanização, com comércio de rua e escritórios, distribuídos entre edifícios de diferentes épocas e arquiteturas sobrepostas.
Meu acampamento espelhava as moradias efêmeras de pessoas em situação de rua: pequenas cabanas feitas de papelão, cobertores e lonas plásticas. Às vezes, eu simplesmente permanecia ali, lendo, desenhando ou conversando com quem batia no vidro da vitrine para perguntar o que eu estava fazendo. Muitos se intrigavam com os desenhos, queriam saber como eu os fazia, ou o que eu tanto observava. De vez em quando, eu deixava alguns entrarem. Conheci uma diversidade imensa de pessoas vindas de todas as partes da cidade, com realidades sociais contrastantes — de estudantes curiosos a policiais em ronda pela estação.

Demiurgo Caballero por Renato Pera, 2015
“A cidade dá a ilusão de que a terra não existe” Robert Smithson
A meu ver, o que anima a obra de Daniel Caballero é uma inclinação à entropia, um grau extremo de desordem e imprevisibilidade, em que a matéria de seu trabalho tende a um estado de falência, de saturação e de dissolução de limites. Aí reside o maior interesse de suas proposições e, especialmente, de seus procedimentos. Muitas vezes, essa tendência é o resultado de gestos conscientes – ou nem tanto - em atitudes de auto-sabotagem: se o desenho está demasiadamente bonito, se apresenta um prazer visual confortável, algum gesto inadvertido do artista e mais violento certamente manchará esta beleza. O inadvertido, o impulsivo, e o arriscado ganham muita energia em seus trabalhos. Do contrário, tenderiam para o extremo oposto, para uma beleza anacrônica e vintage. Tenderiam, igualmente, para um cinismo. Anacrônica porque não se espera que artistas hoje utilizem um repertório iconográfico de botânica, especialmente uma iconografia embebida em temas enciclopedistas e colonialistas (pensemos nas expedições científicas que se realizaram no Brasil desde o século XVII). Uma gráfica de poder, seria possível afirmar. Não me arriscaria a criar uma defesa das qualidades cínico-críticas do uso desta iconografia, pois parece-me que o artista ainda está buscando o terreno crítico no qual quer apoiar a resolução formal de sua produção. Deixar esta fenda aberta pode ser muito proveitoso. Se o discurso crítico tende à solidificar, diferenciar, impor limites ao assunto, parece-me, pois, um continente inadequado para uma obra de arte entrópica, sem forma, desajeitada.
O artista propõe excursões com o objetivo de detectar as relações que a cidade (uma grande cidade como São Paulo) estabelece com a paisagem natural. Nesta “queda de braço” entre cidade e natureza, a cidade já ganhou, e já vem ganhando há muito tempo. Se a paisagem natural poderia despertar em nós uma emoção sublime - reverência, ameaça, terror, ou ainda, diluição em sua vastidão e potência ilimitadas - não parece ser esta a natureza apresentada pelo artista. A experiência do sublime, em seu trabalho, encontra um eco nostálgico, mas que o artista esforça-se em recompor ao armazenar num mesmo espaço amostras de plantas e de terra em seu estado natural, recolhidas em terrenos baldios, além de desenhos e estruturas que nos remetem à paisagens montanhosas. Do grande corpo sólido de terra e pedra que é uma montanha, o artista preserva somente um vestígio, uma pequena referência. O que me parece interessante é que, além de ser montanha, as estruturas são também cabanas, lugares rudimentares de proteção e abrigo, e temos uma contradição frutífera: por um lado, uma domesticação da representação da paisagem natural (movimento que a configuração da cidade realiza), e por outro, um retorno a uma condição primitiva, ao interior da caverna (novamente, entropia).
Demiurgo-Caballero. Se o demiurgo platônico reproduz a forma segundo modelos ideais, portanto impõe ordem onde a ordem não existe, Daniel Caballero parece encontrar um mundo em desmoronamento. O demiurgo torna-se uma espécie de arquivista, um ser exausto que tenta reter algo deste mundo com fita adesiva e outros materiais toscos e rápidos, antes que o mundo deixe de existir.





A essa altura eu já tinha acumulado vários cadernos de desenhos, de viagens, de arredores da minha casa, de entulhos, jardins, terrenos baldios entre outros lugares e objetos do ecossistema urbano. Entendi, que todas as áreas planas tinham se transformado em cidade. apenas as montanhas como obstáculo, sobreviveram com sua vegetação e animais.



