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Fábrica de naturalistas, desde 2015

Oficinas e ações voltadas à desenvolver habilidades e sensibilizações com a paisagem natural.

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Histórias da Terra Vermelha e outras estórias: notações de Daniel Caballero no Cerrado Infinito. por Daniela Canguçu e Daniel Caballero

 

Resumo: Este ensaio ocorreu em aliança com o artista visual Daniel Caballero para situar a experiência do Cerrado Infinito e os efeitos do trabalho artístico dessa natureza no contexto contemporâneo. Histórias da Terra Vermelha faz parte de seus experimentos artísticos, com enunciações firmadas em diferentes domínios. Ou ainda: a arte relacional imantada pelo artista produz distintas interpretações, que foram conduzidas aqui pelo nosso repertório teórico-conceitual de múltiplos cruzamentos.

Palavras-chave: arte ruderal; arte relacional; arte política; land art, artivismo; Cerrado Infinito

 

Primeiras notas

 

"Acho que deveríamos sonhar a terra, pois ela tem coração e respira. "

 Davi Kopenawa 1

A pergunta sobre como se dá a aproximação (ou melhor, a fusão) entre arte e vida é essencial para aqueles que pensam que atividade artística e exercício crítico andam de mãos dadas no contexto contemporâneo. É por meio dessa nova sensibilidade (que nem é tão nova assim, considerando as manifestações diferenciadas das vanguardas artísticas e do movimento da Contracultura) que me interessei pelo Cerrado Infinito, projeto do artista visual Daniel Caballero.

​​

O texto que aqui se esboça é uma resultância da participação nas ações mais recentes do Cerrado Infinito. Numa dessas passadas, pude conversar com Daniel para entender em que se escoram suas iniciativas e proposições. Durante uma entrevista muito aberta, suas inclinações como artista e os aspectos conceituais do trabalho foram se precipitando e ganharam relevo durante nossa conversa, dando a impressão de que as experiências do Cerrado Infinito adquiriam uma dimensão surreal. Necessitaria, contudo, de uma extensa explicação para vincular essa atribuição às ações do projeto, mas nesse momento nos manteremos conectados à descrição da experiência para, em seguida, deduzirmos que a arte, tal como entendo, não opera por uma funcionalidade.

Diferentemente disso, ela oferece um desfile equivalente ao que experimentamos nas manifestações que fraturam com a racionalidade capitalista, efetuando-se por meio de relações mais ignoradas, algumas “escandalosamente mal conhecidas” 2 , como entrevemos nos rituais e nas manifestações afro-indígenas. Prova disso é o nome dado ao projeto, em que encontramos pareado ao substantivo Cerrado – que tem encerrada sua existência como bioma ativo – o adjetivo Infinito, aludindo, de imediato, à imaginação.

Daí as ações por ele empenhadas possibilitam um fenômeno complexo e híbrido que indica que, nos malabares entre finito e infinito, há subversões. Na experiência estética, elas se equivalem às projeções surrealistas que recusam e desnudam a aridez da arquitetura política neoliberal. No Cerrado Infinito, o artista formaliza uma outra maneira de viver e estar no mundo, colocando as vidas vegetal, mineral e animal num mesmo patamar. O seu excedente utópico está na premissa, assim ele diz: “o cerrado é a miragem!” 3 .

 

Sem que haja negação à destruição desenfreada, Caballero chama o público para colocar-se nesse comum, ainda que seja pela presença efêmera dos encontros. Apelando para as citações conhecidas, algumas parodiadas, suas chamadas diretas e provocativas oscilam entre o divertido e o humor ácido. “Agro é campo! Cultura é cultivo! Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?”. Esse é um dos acenos do artista quando endereça o convite ao público, pelas redes sociais, para participar dos eventos do Cerrado Infinito. Naquela ocasião, Caballero acentuava que as ações que se desenvolveriam naquele trecho poderiam ser definidas como “o cultivo das inutilidades”. Em seguida, ele explica:

 

Desde a época do Crescente Fértil até as Agroflorestas, cultivar o campo é um antropismo, que muda a terra para torná-la útil. Por isso, não basta mudar o sistema produtivo, é preciso conter sua expansão, abrindo territórios inúteis. Hoje não é mais possível pensarmos numa ecologia passiva e não antrópica. Apenas parar de caçar, pescar, cortar e se retirar dos lugares não garante mais a conservação biológica. Se as baleias se baqueteiam de Krill e microplástico na Antártica, e as flores do Ártico escondem as carcaças dos últimos ursos polares, nós dos trópicos distantes fazemos o quê? Cultivamos cerrado, óbvio! 4

 

Essa convocação vem, na verdade, com um convite triplo do artista para o público. Primeiramente, temos a oficina Histórias da Terra Vermelha, na Casa Museu Ema Klabin, em que se narra sobre o projeto Cerrado Infinito e suas expansões. Nela, ele mostra as imagens das últimas paisagens campestres da cidade de São Paulo que cresceu justapondo-se a esses campos até eles desaparecerem por completo. Durante a narração, é apresentado o começo da Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga que, como poucos sabem, era formada por extensos campos de cerrados.

Essa vivência, replicada em vários outros espaços culturais, em unidades do Sesc e no próprio Cerrado Infinito, fortalece um espaço para perguntas. Eis algumas delas: “Existiria a cidade de São Paulo sem o cerrado?”, “A relação do cerrado com a ecologia do Mediterrâneo favoreceu o estabelecimento da colonização portuguesa aqui nas terras brasileiras?”, “Qual seria o marco zero da ocupação do cerrado?”, “A independência do Brasil foi proclamada no cerrado paulistano do Ipiranga?”. Bem, os assuntos são desfiados pelo artista nesses encontros e, ainda que tratados informalmente, são capazes de promover uma divagação profunda, por estarem atravessados por entendimentos sutis. Sua essência particular, aguda em demonstrações e estranhas formulações, persegue a emergência da humanidade, se ela ainda quer manter-se viva.

A intervenção de Caballero na Casa Museu Ema Klabin, todavia, não se esgota aí, seguindo com os participantes para uma atividade prática de modelagem com argila, numa abordagem que dialoga com o mesmo princípio do Cerrado Infinito, encenado ali por algumas outras vibrações. Pois bem, uma roda é formada em volta de uma mesa espaçosa.

Orientado pelo artista, cada participante pega uma bola de argila do tamanho que preencha as duas mãos. O próximo passo é cada um modelar a matéria formando um autorretrato, usando os princípios básicos da escultura. Esse busto, em seguida, vai sendo passado de mão em mão para ser modificado ou melhorado por cada um até voltar para o respectivo dono. A dinâmica propõe primeiramente que todos se imaginem naquela matéria e, depois, se olhem, até que no final cada pessoa recebe uma imagem coletiva de si mesma, feita por todos.

Nesse interim, terras coloridas, vermelhas, amarelas e de diferentes locais da cidade podem ser misturadas com a argila e adicionadas a ela. Mistura de pontos de vista, de terras diferentes e até de sementes, cada busto podia ser largado pela cidade, com o propósito de liberar, aos poucos, sementes que germinariam as espécies do Cerrado Infinito. Muito particular era o modo como isso se efetivaria, a depender de onde a pequena escultura fosse deixada e como a matéria reagiria em cada local – a argila poderia craquelar com o calor ou derreter com a chuva, integrando-se ao solo úmido. De todo modo, as sementes estariam em contato na terra e, certamente, se espalhariam pelos terrenos, brotando as espécies do cerrado, de um modo selvagem e sem que ninguém dissesse como deveria ser.

Ainda nesse bloco de atividades da Casa Museu Ema Klabin, coube uma visita no Cerrado Infinito da Praça da Nascente, que ocorreu uma semana depois. Esse desfecho autentica o que foi tratado durante a oficina Histórias da Terra Vermelha, permitindo que o imaginário de todos e de cada um pudesse ser remodelado em conexão com as plantas nativas em extinção, renovando projeções mais férteis em nossas terras interiores.

 

Nessa mesma chamada para a oficina, Caballero faz menção ao evento promovido pelo Jardinalidades na Praça da Nascente, onde conversou com uma liderança indígena e com um outro artista visual e educador que também trazia para o seu trabalho a questão territorial. Esse encontro em que reunia artivistas, educadores, paisagistas, biólogos, estudantes, crianças curiosas, pesquisadores em geral e outros artistas visuais aconteceu naquela ambientação, onde a reflexão coletiva pôde compor com as espécies do Cerrado Infinito. As pessoas instalavam-se em aliança com as plantas, fortalecendo traços éticos importantes e profundamente ameaçados na e pela subjetividade contemporânea.

Naquele exato momento, a estadia do Cerrado Infinito na Casa das Caldeiras estava indo de vento em popa, com encontros semanais e aparições de públicos diversos. Fixando-se naquele terreno muito favorável para as espécies nativas, iluminadas pelo sol quase ininterrupto, víamos ensejar ali o propósito do artista. Testemunhamos a criação de um mosaico exuberante que, num dado momento, chegou a um ápice. Ou seja, essa combinatória entre tempo e espaço permitiu que os capins se desenvolvessem vertiginosamente, os arbustos

se avolumassem e as floradas acontecessem como deveria ser. É curioso como as flores do cerrado atraiam espécies animais inexistentes na paisagem urbana, como muitos tipos de borboletas que migravam para o jardim da Casa das Caldeiras. Então, bem ali se formou um pequeno ecossistema com grandes variedades de flores de tamanhos diversos para diversos tamanhos de insetos. Contemplando ações que traziam conversas sobre as terras e semeaduras de novas espécies vegetais para aquele novíssimo Cerrado Infinito, o artista conseguiu, em alguma medida, promover o que parece ser tão destoante e difícil em nossos dias, ou seja, naquela oportunidade ele sustentava que “pensar é experimentar”.

 

Assim, Terra Vermelha vrs Terra Preta – Ampliando a percepção para outras ecologias, uma das proposições realizadas no Cerrado Infinito, contemplava por inteiro as preocupações centrais do artista ao privilegiar os cruzamentos entre diferentes saberes e disciplinas numa aproximação bastante tênue com as transformações contemporâneas. A arte ruderal de Daniel Caballero traz uma perspectiva francamente transdisciplinar, porque, para visualizar o alcance das intervenções artísticas que ele propõe no Cerrado Infinito, é preciso transitar por esses lugares, onde as esferas da arte e da vida estão indissociavelmente imbricadas. E faz isso mostrando que podemos percorrer um tecido capilar, que é o próprio devaneio que põe nossa circulação mental em trabalho, como na inclinação surrealista.

 

Podemos sonhar, dormindo ou acordados, com o cerrado em São Paulo, uma savana extensa e diversa e, simultaneamente, cultivar as espécies nativas em nossos territórios completamente desfigurados pelas plantas exóticas. Todos os esforços e as emendas múltiplas encontradas aqui e ali são, na verdade, enfrentamentos incessantes da imposição epistemicida. Realizadas as travessias junto com o artista, que mostra em ato as recorrências e intersecções temáticas de seus procedimentos, temos pelo menos um desfecho. Qual seria? Bem, a nossa compreensão sobre o que é arte, ou, melhor dizendo, sobre o que é a arte contemporânea – essa expressão vasta e vaga, que carrega dois significantes de peso –, já não é, definitivamente, mais a mesma.

 

Segunda nota

Na trilha do Cerrado Infinito há muitos extratos, mas nos contentaremos em saber, por enquanto, ao menos um. No contexto em que essas espécies são apagadas do mapa, uma criança de 9 anos que começa a frequentar os encontros dá mostras de sua rápida imersão no Cerrado Infinito. Se deparar com as Línguas-de-tucano (Eryngium horridum) produziu um alargamento interessante, já que sua atenção pela planta de porte majestoso foi imediata e genuína; aliás, ali na convivência só cresceu essa relação entre elas, pois o que até então estava de fora passa a integrar seu repertório de imagens vegetais; a Língua-de-tucano lhe trazia, observando de perto, enormes desafios e, pelas características – da criança e da planta –, não teria como ser diferente.

Similar ao aspecto de uma bromélia, com folhas basais numerosas e as margens fortemente espinhosas ou denteadas, carregam frutos ovoides e escamas em forma de lança. A descrição minuciosa da planta pelo artista (aqui parafraseada) sugere seu potencial manifesto, sibilando, assim, a curiosidade dessa criança (e de outras) e dos que ali estavam. Enquanto participa do plantio, prova que sabe o nome das plantas (não de todas, já que ela chegou agora), mas tudo indica que em breve saberá de mais algumas. Ora, sua permanência no Cerrado Infinito, com o artista e com os outros participantes, eventualmente com os jardineiros, redundou numa exploração interessante para ela. Noutro dia chega uma senhora para participar de uma das chamadas do artista e, quase no término daquele encontro, ela se apresenta, para os que estavam ali, como artista plástica. Conta brevemente que costuma desenhar as flores do cerrado e, por esse motivo, bateu uma curiosidade pelo Cerrado Infinito. Nesse momento, menciona sua aspiração atual endereçando ao artista uma pergunta, mais ou menos assim: “Daniel, me ensina a ser ativista?”. Não sabemos ainda o que traz essa questão – um pouco enigmática, talvez.

Poderíamos supor, contudo, que ela desejasse ampliar sua relação com seus “modelos vivos”, criar mais intimidade com essas plantas do cerrado que, até então, estão representadas em seus trabalhos, sem saber muito mais sobre cada uma delas. Arrisco dizer que isso que foi buscar no Cerrado Infinito encontre alguma convergência com a ativação que o artista encoraja com as “bombas de sementes” para serem espalhadas por muitos lugares, numa ideia de proliferação das espécies nativas, além de outras provocações dessa natureza.

 

A vivência – nesses breves relatos que mostram o encontro da criança e o da artista plástica com o Cerrado da Nascente – pôde ser transformada em experiência, na tônica de Walter Benjamin, na medida em que o que se vive passa a ser narrado e adquire significância. Ele fala, sabemos, da geração que viveu a guerra, mas as relações que vivemos hoje têm essa marca; ora, a “pobreza de experiência”, para esse pensador, transformou-se “numa espécie de nova barbárie” 5 . Sua constatação diz que o aumento do conhecimento e da cultura, decorrente das inúmeras descobertas técnicas e tecnológicas pós-Revolução Industrial, não foi capaz de produzir narrativas assimiladas como experiência: “aqui se mostra, da forma mais evidente, como a nossa pobreza de experiência é apenas uma parte da grande pobreza que ganhou um novo rosto – com a nitidez e o recorte exato do mendigo medieval 6 .

Bem, o Cerrado Infinito, como um formato de experimentação estética, produz um alargamento na experiência. Isso parece pouco? Isso é muito? Seja como for, testemunhamos a morte das espécies todos os dias, de modo que espécies animais também desaparecerão, assim como nascentes e rios secam, porque a “fauna” (incluindo os humanos) não deixa, as alterações climáticas impedem, o agronegócio domina. Mas também constatamos um outro tipo de morte; melhor dizendo, há morte quando não falamos das plantas porque mal sabemos seus nomes. A morte simbólica, na acústica psicanalítica, acontece quando há esse apagamento.

Nesse caso, não há nenhuma dúvida de que as plantas, ao serem devoradas pela urbanização, são devastadas da linguagem até saírem completamente da memória coletiva. Com a arte ruderal, todavia, instala-se a vegetação nativa, estalando profusas reflexões. Tem acontecido mais ou menos assim... e as plantas do cerrado paulistano passam a integrar nosso repertório imagético, vocabular e linguístico, seja pela presença em nossos cotidianos ou mesmo quando vêm encenar sua eloquência em nossa imaginação.

 

Últimas notas

Uma última nota é, na verdade, a penúltima, porque essa trilha de muitas notações não se fecha por aqui. Nesse decurso, tratei pela escrita, a minha, a escrita do artista. Daniel Caballero escreve. Esboços e rabiscos que antecedem seus trabalhos e explicitam seus projetos, além de anotações sobre sua pesquisa, na qual podemos divisar o que o move e como se ordena seu campo de referências. Tratando-se de arte, a escrita pode se dar de muitas maneiras, e nem sempre temos acesso aos termos do artista. É, portanto, pela escrita de Daniel Caballero que testemunhamos a força conceitual de seu trabalho.

 

De forma declaradamente autobiográfica, embora não seja esse o propósito do artista, somos convocados a tecer um novo modo de apreciação para avistar a dimensão de seus projetos artísticos e a exigência pessoal (e, portanto, psíquica) neles impostas. Sob a égide da sutura entre vida e arte, firmada a partir das vanguardas, inscrevem-se trabalhos dessa natureza. Mas qual trabalho artístico não seria? Frisemos ainda que a produção teórica e conceitual sobre o trabalho/percurso do artista fica, na maior parte das vezes, encerrada na figura dos curadores ou dos críticos de arte, e, ainda que estes tragam comentários assertivos, algo lhes escapa. O que o artista pensa sobre seu trabalho tem uma qualidade muito particular, muito específica que só ele pode transmitir. Há um saber dos artistas. Trata-se, pois, do saber inconsciente.

Bem, termino este ensaio com uma nota psicanalítica. Subitamente, ela amolda-se sem eclipsar o que já foi pensado. Quem me inspira, nesse instante, é o conjunto de textos Nota Azul, de Alain Didier-Weill, sobescrito aos artistas e aos psicanalistas. Não posso desenvolver tudo isso aqui, mas arrumei uma maneira de mostrar um ponto de vista, então será preciso um pequeno sobrevoo: a nota a que ele se refere é, pois, sonora, musical. Explico: trata-se de uma linguagem que se funda na relação presença-ausência, inserindo outra temporalidade, um tempo diferente da palavra. Porque antes de recebermos a palavra do Outro, antes mesmo de entendermos o sentido dos fonemas, percebemos o mais simples elemento musical, a nota.

Insisto com Didier-Weill: “tudo se passa como se nós mesmos produzíssemos as notas que nos atravessam” 7 .

Variações de uma mesma nota: o inconsciente é o Real 8 . O Real é o que não vai bem. O Real é o elemento musical não representável. O Real é o impossível. Inteiramente outro, como se vê, é o tom empregado na modelagem topológica, que traz as amarrações entre os registros do psiquismo: Real, Simbólico e Imaginário. Invenção lacaniana, muito fértil, aliás: uma reviravolta que expõe, justamente, a estética do Real, uma estética voltada para a ética. Quer dizer, o que se produz aí é “uma estética da clínica psicanalítica a partir do Real como

vetor de orientação” 9 .

De que maneira? Pelo savoir-faire. Do lado do analista, vemos ele se valer de sua experiência com o inconsciente para sustentar o ato analítico, o saber-fazer com o Real, domínio este que implica na arte de tratar o impossível. E, do lado do artista, por certo, há sempre um saber fazer com o Real, mas, entendam, não se trata de uma questão de dom, talento ou qualquer coisa do gênero. É outra coisa. Trata-se, pois, de uma condição para que o artístico do trabalho aconteça. Não deixa de ser, esse savoir-faire, uma implicação, uma responsabilização pelo que se faz, ou, melhor dizendo, um artifício que coloca analista e artista numa função análoga.

 

                                                                                                                                                     ***

 

A destruição está declarada: Pantanal em chamas, rio Negro secando, Cerrado desaparecendo do mapa. Nada está escondido: as tragédias são recorrentes, sabemos de onde vêm e antevemos aonde vão dar. Diante disso, Daniel Caballero segue germinando a ideia de um cerrado infinito, para si e para muitos, numa recriação capaz de modular a paisagem extinta. Ou seja, ao operar as realidades desse bioma, evoca miragens. Essa é sua nota rítmica. Na sequência dessa escolha decisiva, entrega-se inteiramente às exigências do trabalho artístico, exaure seu corpo e extrapola limites para inventar uma ambientação que reanima as espécies nativas do cerrado paulista. Há aí, portanto, um saber-fazer com o Real radical. Nas nuances do tempo, eis a faísca que me conduz a pensar o trabalho desse artista como rebelião e poesia!

 

Referências

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barreto. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2023 [1932-1933]. p. 83-90.

CABALLERO, Daniel. Guia de Campo dos Campos de Piratininga ou O que sobrou do cerrado paulistano ou Como fazer seu próprio Cerrado Infinito. São Paulo: La luz del fuego, 2016.

DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Tradução de Cristina Lacerda e Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997.

GIRARD, Guy. Sombra e pergunta: projeções surrealistas. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: 100/cabeças, 2022.

GUERRA, Andréa Máris Campos. Sutilezas do tratamento do Real no final do ensino lacaniano: a letra, o savoir-y-faire e l´âme à tiers. In: LIMA, Maria Mello de; JORGE, Marco Antonio Coutinho (ed.). Saber fazer com o Real: diálogos entre psicanálise e arte. Rio de Janeiro: Zahar; Cia de Freud, 2009. p. 131-143.

LIMULJA, Hanna. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomani. São Paulo: Editora UBU, 2022.

1 Kopenawa apud Limulja, 2022, p. 35.

2 Girard, 2022.

3

4 Uma das chamadas do artista nas redes sociais.

5 Benjamin, 2023 [1932-1933], p. 86.

6 Benjamin, 2023 [1932-1933], p. 86.

7 Didier-Weill, 1997, p. 95.

8 Aqui, a palavra Real, grafada em letra maiúscula, refere-se ao registro do psiquismo para distinguir do real, em letra minúscula, referindo-se à realidade.

9 Guerra, 2009, p. 138.

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Todas as atividades visam favorecer encontros e desenvolver relacionamentos entre as pessoas e as plantas.

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