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COMEÇOS DO FIM DO MUNDO 0.2 GARAGELAND

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Ao me mudar, ocupei todos os espaços da minha casa, menos uma área anexa, uma garagem fechada com tapumes, separada por uma parede do resto do terreno. Passou um bom tempo até decidir retirar esses tapumes e abrir a porta da garagem. Primeiro, por me sentir obrigado a tomar posse e conhecimento de toda a minha área, mas, a seguir, a motivação foi mais espontânea: a pura curiosidade do que poderia haver dentro. A expectativa deu lugar rapidamente à decepção; não havia nada de especial ali, apenas alguns restos de material de construção e entulho.

O espaço, ainda desconectado da casa, agora estava aberto para a pequena rua sem saída onde moro, uma vila escondida ao lado de uma rua movimentada, e assim ficou por meses. Ao longo do tempo, começou a acumular uma série de objetos inusitados: um aspirador de pó quebrado, sacos de entulho com pedaços de tijolos, caixas de papelão, embalagens de refrigerante, livros velhos, entre outras coisas, além das folhas das árvores, que se depositavam levadas pelo vento. O espaço começou a ser tratado como um lixão, embora não tivesse nada orgânico que atraísse baratas, ratos ou mau cheiro. Deixei assim, como se não fosse um espaço meu, apenas um pequeno espaço baldio e acessível para qualquer um, que passei a tratar como um cultivo de descartes.

Comecei a desenhar ou transformar em esculturas os materiais que surgiam, além de incorporar outros elementos, como roupas velhas, impressos que deram errado, e escrever palavras e frases aleatórias sobre o cotidiano, das falas de pessoas ao meu redor ou o que lia na época. Ao dar algum sentido àqueles objetos, a dinâmica mudou sutilmente. Percebi que alguns elementos sumiam, outros surgiam e pequenos grupos se recombinavam sozinhos pelo lugar, como se andassem, se reunissem ou fizessem parte de algum tipo de comunicação de mensagens cifradas, que de alguma forma se relacionava com o que estava vivendo na época. Poderia ser minha imaginação, ou simplesmente pessoas que mexiam aleatoriamente nas coisas, mas passei a de alguma forma responder e manter esse diálogo, e conforme a composição se desenvolvia, os elementos ganhavam novos sentidos.

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Apesar de estar numa rua pequena, resguardada da via mais movimentada, ao lado da minha casa existia um comércio que atraía pessoas, e algumas paravam em frente para ver e até tiravam fotos. Aos poucos, começaram a se formar alguns grupos, que de tempos em tempos, como uma romaria, visitavam a garagem, como se aquilo fosse algum tipo de street art. Os objetos continuavam sumindo, aparecendo e mudando de lugar diariamente, mas não parecia que fosse autoria de alguma dessas pessoas. Depois de pouco mais de dois meses, aquele lugar se enchia de significados e, de alguma forma, cada vez que eu trabalhava esses elementos, adicionando meus rejeitos, parecia estar atraindo mais objetos e situações até começar a ficar saturado de informação. Todo esse processo começou a incomodar os meus vizinhos, que viam tudo como simples lixo, e começaram a se preocupar com um aumento de pessoas zanzando. Pressionado para acabar a experiência e sumir com tudo, tive a ideia de botar fogo em alguns dos objetos, de certa forma, para tentar criar um tipo de folha em branco, esvaziando tudo. Me pareceu que simplesmente descartar esses objetos seria mantê-los no processo corriqueiro de uso, consumo e esquecimento. E quis testar se, ao transformá-los em cinzas, conseguiria pontuar um fim para essa dinâmica, ou incitar algum tipo de reação que tirasse minhas dúvidas sobre essa comunicação que apenas eu via e meus vizinhos não. Seria real ou uma fantasia da minha cabeça? Até então, não tinha feito nenhum registro, e decidi tirar essas fotos à noite. A iluminação da rua estava quebrada, tudo estava escuro, e a luz da queima era bonita, mas como tinha alguns materiais com componentes de plástico, que criavam uma fumaça preta com um cheiro muito forte, apaguei tudo, e no fim tirei poucas fotos. A paisagem chamuscada não me ajudou a tranquilizar os vizinhos, e embora entendesse que ainda assim eu pudesse fazer na minha casa o que queria sem dar grandes satisfações, não a estava tratando exatamente como um lugar meu. Achei melhor concluir o experimento e não incomodar mais ninguém. Chamei uma caçamba, que retirou tudo, convenientemente com a resolução de construir ali o meu ateliê, onde começaria a desenvolver meus trabalhos de arte. Além de demolir o telhado, a parede lateral e retirar o piso, quis deixar a terra nua e o espaço o mais vazio possível.

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Para mim, tratava-se de uma transição pessoal; me tornaria um artista e buscaria começar um novo significado de vida ali. No final da manhã seguinte à demolição, um sábado, eu ainda dormia ressaquento da noite anterior, quando a campainha tocou. Um casal novo, a mulher segurava um bebê, e pela roupa pareciam rappers, me perguntavam se era eu que tinha destruído a instalação. Respondi meio sonâmbulo, sem entender bem a pergunta, que sim, mas antes que continuasse, ficaram bravos, me disseram que tinham marcado o encontro de um coletivo do qual faziam parte, para usar a garagem e fazer performances dentro dela. Um coletivo? Enquanto pensava se ainda estava dormindo, eles se foram. Sem reação, depois de um instante, saí e tentei encontrá-los na rua, mas não havia mais ninguém. Quer dizer, será mesmo que aquele lugar por algum tempo realmente tinha deixado de ser meu e, nesse caso, se estabeleceu um tipo de coautoria no que estava fazendo? Fui até onde era a garagem, tudo vazio, parecia que tinha visto uma miragem. Estava incrédulo, mas vi um pedaço de azulejo num canto, com um escrito de caneta preta hidrocor, onde se lia: "A instalação foi destruída! A ação foi cancelada! Aguardem novas instruções! Ass: Matilha UFO."

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Pós- Conceitual  por Saulo di Tarso,  2008

 

Nunca me esqueço do silêncio plasmar causado pelas afirmações feitas por Robert Kudielka, no Centro Universitário Maria Antônia, quando discorreu sobre a arte contemporânea internacional. Ao finalizar sua fala, ele dizia algo no sentido de que tínhamos que descer do vagão simbolizado por Duchamp, Beuys e Kabakov e inventar outra coisa, porque até então éramos ramificação imitativa daquilo que os três decanos trouxeram à realidade da Arte.

A platéia era composta, na sua maioria, por artistas e críticos descendentes ou afirmativos dos três. Na medida em que Kudielka falava, brotava-nos o conjunto de linguagens consagradas por ao menos duas gerações (80 e 90) representadas ali. Nunca mais ouvi ninguém falar a respeito. Mas, de fato, aquele dia foi um divisor de águas, no mínimo, porque delimitou muito bem que havia a necessidade do “fim” de três pregnâncias na arte tida como global: conceitualismo, neoformalismo e a das problemáticas ecológico-visuais proativas existentes na arte de Kabakov.

Daniel Caballero é uma espécie de autófago das artes visuais: quando você menos espera, surge uma harmonia refinada de dentro do caos e do previsível somados na sua linguagem. Harmonia que ele cria ao unir caligrafia à simbologia que traz de uma universalidade da ilustração, universo no qual se insere como criador original. A figura humana que forma edifícios transcende o óbvio e reafirma que do urbano nascem múltiplas realidades. A imagem nasce da palavra.

Sua ação visual resulta de um uso não pré-determinista das técnicas gráficas, digitais e espaciais. Esqueletos e barracos, vida e morte, poesia e cacografias. Você vê um muro na sua pintura? Eis o inverso do graffiti. Engana-se quem pensa que Caballero é uma espécie de neo-antropófago, pois do mesmo modo como a Antropofagia inaugurou a interação nas artes, a interação está transformando a Antropofagia em algo esmaecido no tempo. No que isso vai dar? Honestamente, não sei. Mas este “fim do mundo” que nos conta Caballero o alinha com Daniel Melim, Marcos Garutti, Nunca, Mangue beat, Funk carioca, Re:combo, Cordel do fogo encantado... Isso é Pop? Não, é outra coisa. É algo que veio das ruas onde Nina atuou como atriz e das sertanidades urbanas espalhadas por aí.

Cidades feitas de gente multicultural e multiconflitiva. Uma quarta via, talvez, coletivos pós-tudo feitos por artistas que não precisam descer do vagão, pois jamais estiveram nele.

Segundo o que se vê em “o começo 0.2”, Caballero está fazendo a beleza clássica contemporânea arder no fogo do inferno: aqui, outra iconoclastia: aquela que põe fim à lógica das instituições que pairam sobre todos como uma entidade de absorção, passagem e emissão de um conhecimento visual obrigatório. É uma situação visual livre, que do nanquim ao Macintosh, e daí para as ruas apreendidas pelo seu olhar, vai somando ao graffiti, webart e às mídias, musicais, impressas, sem incorrer a sua postura como figura única das artes visuais estigmatizadas por um circuito. Ao contrário, ele faz parte de um enredo coletivo, legado da geração contemporânea, sem limite de idade ou delimitação de escolas: fim. E viverão felizes para sempre: caos e Kudielka.

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COMEÇOS DO FIM DO MUNDO 0.2 

 PECORINO MALOCA

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Começos do fim do mundo 0.2 - Pecorino Maloca, Metropolis : contenitori di quali contenuti?, GIL, ex casa della Gioventú Italina del Littorio di Trastevere, Roma - 2007.

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Quando os barracos forem todos pintados de branco será como a Grécia, como as roupas brancas do terreiro, como a luz de nosso senhor, em cada porta um ramo de alecrim, um conjunto de 7 ervas, e um abacaxi tropical, decoração de exteriores para esconder a cara pálida, como móveis de Provence que se compram das Minas Gerais, será como Andaluzia,  algum lugar da Inglaterra, ou algum de Portugal, cinematograficamente como um bang bang á italiana que ao pular a janela, entrar no bar barroco profundo, não se pode mais sair por que nunca te abrirão a porta.

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"Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropofágo", por Alexandre Ignácio Alves

 

*Manifesto antropófago (1928) Oswald de Andrade.

Dois grandes intelectuais brasileiros pensaram a cultura brasileira como uma cultura de apropriações.

Na saga “Macunaíma”, o poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo e ensaísta Mario de Andrade afirma o povo brasileiro, como” um povo sem nenhum caráter”, um povo mestiço, de um país formado por todos os continentes.

Oswald de Andrade escritor do “Manifesto Antropófagico”, nos descreve como sujeitos de uma cultura antropofaga, ou seja, uma cultura de assimilação e apropriação do outro. Mas para ambos, a antropofagia é usada no sentido simbólico. O antropófago não come para alimentar-se mas para apropriar-se de características qualitativas do outro. misturá-las e hibridiza-las, transformando-se assim em algo novo.

São Paulo é uma megalópole antropofágica, que devora sem concessões seus 18 milhões de habitantes que, vindos de todas partes, devoram a cidade com uma voracidade luxuriante. E isto não deixa de multiplicar a rede de interação com outras grandes cidades do país, 

No Brasil somos capazes de conviver com a diversidade antropológica de um modo particular. Esta forma acentuada por um certo caos social no convívio é a nossa grande contribuição para o mundo, ou seja, somos capazes de gerar uma sociedade multiétnica e transcultural que advém da apropriação das diversidades.

Somos uma nação multidisciplinar por excelência.

A escolha dos artistas que participam deste contexto se deu pelo viés da apropriação, ou seja, a partir da pluralidade de meios expressivos, da diversidade de pensamentos e origens étnicas dos convidados e de como estes artistas se utilizam destas linguagens para experimentar e ou absorver o outro. E quando algo no outro nos diz respeito é porque já temos internamente algumas reminiscências da nossa semelhança, muitas vezes guardada em toda e aparente diferença, que existe nas coisas.

Há uma projeção, um processo de internalização do outro. Esta pode ser uma chave para a leitura da linguagem arte-cinema que se projeta na obra de Cao Guimarães, Rua de Mão Dupla. Ele dá aos participantes (ou espectadores/ ou ambos?) a oportunidade de experimentar o outro em si mesmo.

Surgindo da dança, mas transpondo seu limite para o corpo-arte, vem a proposta de Carolina Novelleto, "Nós", que experimenta, em si mesma, os vários corpos da metrópole, corpos observados atentamente e nos quais ela percebeu as diversas influências étnicas, sociais e culturais que os moldam.

Na contramão, o venezuelano Ricardo Alcaide subverte a ordem canibal nas séries "transeuntes" e "Outdoors", ele devora e é devorado pela cidade. Sendo ele o único estrangeiro, sofre o incômodo com a cidade de São Paulo, o que o leva a manipular as imagens, criando uma “realidade” inexistente no entorno que a princípio lhe parece estranho. 

E na sua instalação "Começo do Fim do Mundo", Daniel Caballero transforma a cidade e suas mazelas em seres atávicos, impiedosos com seus habitantes. O caos urbano é a sua ode, a favela seu reino e o barraco seu castelo. 

Bienvenuti Signori in questa realitá paulistana, Babel brasileira, a metrópole que é a própria antropofagia.

Texto realizado para catálogo da exposição  Metropolis : contenitori di quali contenuti?, GIL, ex casa della Gioventú Italina del Littorio di Trastevere, Roma - 2007.

 
BOAS MANEIRAS:
GEOFÁGOS EDUCADOS NÃO ACREDITAM EM LINHAS IMAGINÁRIAS

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Demolir memórias não pode ser uma atividade honesta.

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O espaço é o território onde o ser se concretiza  por Douglas de Souza Leão,  2009

 

Enquanto indivíduos, erguemos muros e os decoramos ao nosso bel-prazer. Já como sociedade, estamos sujeitos à coerção dos muros alheios. A ordenação social muitas vezes reprime a potência do indivíduo. Daniel Caballero expressa através das linhas e das formas a eterna luta do sujeito contra o espaço normativo. O mesmo espaço que nos permite tecer a vontade, é, por outro lado, o elemento que nos castra, pois agrega o peso sufocante do todo. O indivíduo passivo se cala em seu próprio desespero, e vive uma existência cheia de palavras não ditas. Geófagos é a expressão do sujeito ativo devorando os limites arbitrários e construindo a sua própria história.


Texto da exposição Boas maneiras: Geofágos educados não acreditam em linhas imaginárias na Casa do Olhar em St André

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