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DANIel caballero.
EXPEDIÇÃO BOTÂNICA ENTRE AVENIDAS PAULISTANAS
Para conhecer a psicologia da cidade, olhe para os seres mais indefesos. Por exemplo, como os cidadãos tratam as plantas?
Ecomarginais por Juliana Monachesi, Maio de 2014
Até outro dia eu imaginava, do alto da minha leiga ignorância, que a botânica era a mais singela das ciências biológicas. Dedicar-se a estudar plantas, flores, fotossíntese... Só poderia ser uma área do conhecimento absolutamente meiga - afinal, o que poderia estar mais distante e alheio aos ciclos históricos da realidade social humana? Mas, graças ao trabalho que Daniel Caballero desenvolveu para o Festival da Cultura Inglesa, veja você, descobri que existe um ramo da botânica altamente politizado e socialmente engajado. E ainda fica melhor, do ponto de vista estético. A grande bandeira dos botânicos militantes são os marginalizados. Aqueles que espreitam dos terrenos baldios, que vingam quando permanecem invisíveis, que se fortalecem justamente ali onde o descuido do Estado e da sociedade civil os deixa parasitando, ignorados, o bem comum. Refiro-me, obviamente, a esses honrosos membros do reino vegetal denominados... plantas nativas.
Seja marginal, seja herói, já proclamava HO. Em homenagem às marginais plantas nativas de São Paulo, que só brotam sossegadamente nos terrenos baldios da cidade - onde ninguém vai arrancá-las confundindo os arcaicos matinhos que carregam no DNA toda a ancestralidade de nossa natureza selvagem com ervas daninhas -, saio em busca de alguma historiografia marginal de arte para investigar quem seriam os precursores da expedição botânica marginal de Caballero. Todos os indícios me levam ao artista conceitual americano Alan Sonfist, que em 1965 conseguiu convencer planejadores e burocratas urbanos a ceder um terreno ocioso em La Guardia Place, Manhattan, para instalar ali seu Time Landscape, um parque de plantas nativas de Nova York. Pulularam detratores dizendo que as plantas não iriam vingar em uma metrópole contemporânea, mas não só elas estão lá até hoje, como a listinha de espécimes pré-coloniais de Sonfist hoje consta integralmente da lista de plantas autorizadas para plantio na cidade de Nova York.
O que práticas artísticas tão diversas quanto as de Caballero e Sonfist têm em comum? Bem, algumas intenções coincidentes, pelo menos: propiciar um debate público sobre um assunto desconhecido e urgente; dar a ver, por contraste, um contexto privado amplamente ignorado; talvez, quem sabe, transformar alguma coisa no processo. Em 1965, o expediente de erigir um monumento público em forma de parque - na época da land art e da escultura social de Beuys - era uma boa estratégia artística. Quase 50 anos depois, um procedimento semelhante pareceria ingênuo, datado, ou até instrumentalizado pela má consciência científica, a se fiar em Hal Foster e seu alerta sobre a banalização da arte e da política pelas apropriações mútuas entre etnografia / antropologia / sociologia e arte. Então Daniel parte em expedições urbanas e volta com uma catalogação das maiores aberrações botânicas de que se tem notícia, praticadas por... nós, moradores da metrópole.
A viagem pitoresca do artista contemporâneo, descobrimos na presente exposição, já não diz respeito à exploração de mundos inconcebivelmente distantes e inacessíveis nem tampouco a uma enumeração de espécimes e de suas monótonas características, com vistas a uma suposta análise científica, apesar da carga ficcional e subjetiva de todo relato. Hoje, a viagem pitoresca é empreendida sabendo-se, desde o início, subjetiva e ficcional; transcorre num raio de atuação relativamente pequeno, mas nem por isso menos representativo; e resulta num retrato surpreendentemente revelador não mais sobre o "outro", sobre um dado objeto de pesquisa ou uma amostragem exótica que o explorador coleta e leva consigo de volta ao seu mundo, mas sobre este seu mundo justamente, sobre aquilo que chamamos de natureza ao nosso redor, sobre o "semelhante" com que nos deparamos o tempo todo em todo canto.
Nossa ideia de natureza precisa ser revista. Nossas ideias sobre arte e ecologia também. E nossas noções sobre arte política, mais ainda. Vejo aqui nessa Expedição Botânica entre Avenidas Paulistanas um dos trabalhos de arte mais politizados que vi recentemente. Sem ser panfletário, sem deixar de ser arte por um segundo sequer, é uma obra que logra nos engajar numa questão candente. Ao mesmo tempo em que nos põe a pensar em land art, performance, naturalismo, grafite, intervenção urbana, ready made, pintura, desenho, quadrinhos, cubo branco, display, dispositivos expositivos, narrativa, racionalismo, crise da razão, modernismo, pós-modernismo, multiculturalismo, guerras culturais, geografia, etnografia...
que até então estavam certas para todos, e cada vez mais, parecia que não serviam para mim.
Cap IV
EXPEDIÇÃO BOTÂNICA ENTRE AVENIDAS PAULISTANAS
Primeiramente evito as rotinas que a vida urbana exige, e me dedico a ficar parado. Passo desapercebido na multidão e aos poucos vou deixando de prestar atenção no ir e vir das pessoas até que ficamos todos mutuamente invisíveis.
Essa pequena preparação para explorar um território que me é tão familiar, é necessária no redescobrimento do meu próprio habitat. Fecho então os olhos como um tipo de ritual, para quando os abrir estar em um lugar desconhecido.
A vista mostra um lugar vazio, que vai se preenchendo aos poucos com minha presença, conforme observo.
O tempo mudou, agora passa lento, e sinto a atmosfera e o cheiro particular da cidade.
Ao deixar de fazer parte do cenário cotidiano, perco minhas referências, e me torno apenas um observador solitário, imerso nessa nova paisagem, onde tudo que vejo é meu.
Começo a andar.
Uma bromélia me chama á atenção, toda verde com o centro bem vermelho, paro imediatamente, como se obedecesse um farol de trânsito.
Amarrada no tronco de uma árvore, com algumas voltas de arame farpado, quem a colocou aqui, queria determinar a disputa de mediar o lugar das coisas.
Na cidade, as plantas participam como acessórios, permitidas, desde que tenham alguma função produtiva ou decorativa, e todo o resto é tratado como erva daninha á ser eliminado.
Bromélias, orquídeas e outras plantas, dificilmente escolhem onde querem ficar, devido a sua beleza, são recolhidas perpetuamente, levando algumas á extinção, e existindo unicamente nas floriculturas.
Entro em um supermercado, onde todos compram comida e outros itens, se concentra a maior biodiversidade da metropóle.
Uma plânice de gôndolas formam uma topografia peculiar, onde múltiplas safras simultâneas com variados tipos de abóboras, alfaces e tomates de todos os lugares da terra, se encontram aqui. Caminho entre prateleiras altas que me conduzem á seção de jardinagem.
Um campo multiperfumado e colorido, de flores vestidas,em embalagens plásticas, alinhadas como um exército bonito, confunde minha vista. Não sei o que me encanta mais, se são as cores das flores, ou o reflexo da luz que passa pelos plásticos das embalagens.
Mesmo nesse ambiente reservado, percebo um beija-flor que entra voando no recinto á procura de pólem. Aparentemente desconhece as froteiras que determinamos, da mesma forma que a planta não obedece o vaso.
Hibrídas, produzidas em larga escala, de desenvolvimento rápido, e se reproduzindo com muito sucesso, algumas destas espécies de plantas, que serão compradas aqui, vão se espalhar, colonizando desenfreadamente grandes áreas, indo muito além dos lares que as abrigam. Vão travar uma guerra vegetal silênciosa, que modifica a paisagem de forma irreversivel.
Foram criadas para atender uma tradição longínqua que começou no deserto, onde óasis eram transformados em jardins, potencializando a vida em um lugar regrado pela falta de água.
Aqui ,onde construimos nosso deserto, atendem uma nostalgia do paraiso, memórias das últimas pessoas que passsaram a infância em grandes áreas verdes, ou caprichosos paisagismos tão variados quanto á imaginação e gosto dos donos.
A paisagem anterior, totalmente erradicada, deu lugar ao único habitat possível para o homem, a cidade contemporânea, onde o espaço e sua utilização são continuamente aprimorados, para eliminar todos os problemas cotidianos. Neste planejamento não existe lugar para áreas inúteis.
Mas o que fazemos com as coisas que não sabemos que precisamos?
Fragmento do livro fictício, Viagem Pitoresca através do espaço ao redor da minha casa, 2014